Jongo é Reza – Entrevista com Dely Monteiro

Dely Monteiro, matriarca do encantado grupo Jongo da Serrinha, um legado de Madureira, é entrevistada por Rebecca Rieggs

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Acho que eram umas cinco e meia da manhã. Reparei pelas frestas da janela do quarto que estava amanhecendo… Eu, que sou desprovida do talento de acordar cedo, me espantei com meus próprios olhos abertos! O canto dos passarinhos nesse horário aqui em Vargem Pequena (bairro carioca que eu, carinhosamente, chamo de Nárnia Pequena) é, ao mesmo tempo, ensurdecedor e encantador. Particularmente, eu considero essa cantoria um privilégio! Afinal, quantas moças com mais de meio século de vida, nascidas e criadas na metrópole maravilhosa, recebem a benção de despertarem, em pleno 2024, com essa espécie de ruído?! Toda sagrada manhã.

Aos pouquinhos fui voltando para o sono… E… Tal qual o bate estaca das raves que pipocam nos sítios aqui do bairro, uma pergunta que, há dias, não queria calar, voltou a martelar na minha cabeça: com quem eu vou bater um papo in-crí-vel para a próxima coluna? Março é o mês da cidade do Rio, da Mulher, da Oração, da Poesia, do Teatro… Affff! Desisti de voltar a dormir.

De repente, reluzente como aquele dia que nascia, veio na minha mente uma aparição: a imagem da minha entrevistada! Cantando e dançando… Linda! Vestida com um macacão branco na sua comemoração despretensiosa de aniversário, em outubro passado, no restaurante Tô na Boa, aqui em Vargem Grande (bairro que muito carinhosamente chamo de Nárnia Grande). Foi uma cena mágica, que eu (desculpe aí!) tive a honra de assistir em tempo real. Completamente extasiada, claro!

Bingo! Estava plasmada a minha próxima entrevistada! A divina Dely Monteiro! Matriarca do encantado grupo Jongo da Serrinha, um legado de Madureira! Na mesma hora me arrepiei! Esse tipo de magia já aconteceu com você?! Na mesma hora agradeci pela pauta maravilhosa aos meus amados orixás! E comecei a saltitar na cama! Arrepiei mais ainda… Agradeci às Almas Santas Sagradas e Benditas e aos Deuses da Música! Os arrepios cessaram.

Imediatamente abri o WhatsApp! Objetivo: pedir aquela ajuda básica para dois dos meus amores jornalísticos: Elisa Torres e Janjão-João Pimentel. Digitei mais rápido que uma flexa de Oxóssi: “Me ajuda, por favor. Tem o contato pessoal da Dely Monteiro?” Os próximos capítulos foram um banho de amor, minha gente! Daqueles que lustram a alma. Tal qual os banhos que a Vovó Cambinda das Almas me pede para tomar!

Quanto axé… Quanta beleza! É o que sempre digo: a vida tem magia. E essa entrevista tem fartas porções! Tem mironga nesse bate papo, sabia? Ah, tem! “Jongueiro, jongueira, vem cá, vem me dar a mão…” Salve as Almas Santas, Sagradas e Benditas! Salve o Jongo da Serrinha! Sua Benção Vovó Maria Joana! Sua Benção Mestre Darçy! Sua Benção Dely Monteiro! Sua licença para eu entrar!

Diário do Rio: O jongo é mais do que um ritmo brasileiro. Trata-se de um elemento muito importante da história e da ancestralidade negra no Brasil. É ainda um legado espiritual herdado dos pretos-velhos escravos e uma louvação amorosa ao povo do cativeiro. O que representa o jongo e o grupo Jongo da Serrinha na sua vida?

Dely Monteiro: O jongo representa tudo pra mim! Eu já nasci respirando o jongo, lá no Morro da Serrinha. Eu sou jongueira desde o útero, né? O jongo também representa muito para a cultura do nosso país. Ele é considerado o pai do samba! É um ritmo e uma dança de terreiro de origem africana, mais especificamente do Congo-Angola, trazida para o Brasil pelos negros de origem bantu. Até a década de 1960, só os adultos podiam entrar na roda. Jovens e crianças tinham que ficar apenas observando. Os fundamentos do jongo até hoje são ensinados com muita seriedade e respeito. A história revela que os fazendeiros permitiam que os escravos dançassem o jongo somente nos dias dos santos católicos. Era uma forma de acalmar a revolta dos negros pelos maus tratos sofridos nas plantações de café! Para os escravos, o jongo era um dos únicos momentos de troca e confraternização. As letras ou “pontos” do jongo eram, muitas vezes, uma linguagem cifrada, que eles usavam para conseguir falar secretamente sobre seus sofrimentos e rebeliões. Ou seja, é um tesouro nacional ancestral. A minha missão é manter o jongo vivo e preservado através do Jongo da Serrinha. Como dizia Vó Maria Joana “Nós não somos os donos de nada. O que nós recebemos precisamos passar adiante.” E foi pensando em garantir a perpetuação da nossa cultura ancestral que ela decidiu nos anos 60 quebrar a tradição e expandir o jongo para além do Morro da Serrinha (uma das primeiras favelas do Rio) e também permitir a participação de jovens e crianças, o que antes era inimaginável.

Diário do Rio: Como foi para a menina Dely ser neta de Vó Maria Joana: líder espiritual adorada pela comunidade do Morro da Serrinha, mãe de santo respeitada da “Cabana de Xangô”, rezadeira, parteira, costureira, primeira baiana da Escola de Samba Império Serrano e fundadora do Jongo da Serrinha (1962), um dos maiores símbolos da resistência negra no Rio? A pequena Dely tinha consciência de sua potente ancestralidade?

Dely Monteiro: Desde que me entendo como pessoa, agradeço por ter nascido nessa família! É uma honra ser neta de Maria Joana e Pedro Monteiro! Eu nem sei explicar como é maravilhoso fazer parte da Família Monteiro. Sou banhada pelo jongo desde o ventre da minha mãe, Eva Monteiro, que também era compositora e jongueira… O Jongo da Serrinha nasceu no quintal da casa da minha avó Maria Joana. Eu era bem pequena e já observava ela compondo jongos, junto com meu Tio Darcy (renomado músico Mestre Darcy do Jongo) e Vó Maria Tereza, uma grande amiga da minha avó, que considero parte da nossa família. Foi muito natural e inevitável eu beber naquela fonte tão rica de cultura afro-brasileira, musicalidade, religiosidade e amor! Vó Maria e Vô Pedro eram primos de primeiro grau. Viveram uma linda história de amor e tiveram 14 filhos! Todos se tornaram músicos! Minha avó tocava bandolim e meu avô cavaquinho. A família inteira ensaiava no quintal da casa onde eu nasci e moro até hoje. Vó Maria contava que quase todo dia, por voltas das19h, cada membro da família pegava o seu instrumento para ensaiar e logo a casa ficava cheia de gente, porque a vizinhança vinha em peso para assistir aos ensaios! Não demorava muito o ensaio virava um “baile”. Então, quase todo dia tinha um “baile” na nossa casa! Os mais velhos contam que era uma casa muito animada e divertida! Por isso que meu desejo mais profundo é honrar até meus últimos dias de vida o jongo e essa família tão potente.

Diário do Rio: Você conta que foi uma menina muito tímida. A menina envergonhada para cantar em público se tornou, literalmente, a voz do Jongo da Serrinha. Após o falecimento de Tia Maria do Jongo, aos 98 anos, (2019), o jongo ficou um longo tempo de luto. Em 2022, você foi escolhida pelos jongueiros para dar continuidade ao legado de sua avó e se tornou a nova matriarca do Jongo da Serrinha. Quem é a mulher Dely, por traz da cantora, da griô (herdeira e difusora das tradições) e do matriarcado?

Dely Monteiro: Ainda sou uma menina-mulher tímida! Quando comecei a participar das apresentações do Jongo da Serrinha, por volta dos 12 anos, eu sentia muita vergonha de subir no palco e encarar o público. Graças a Deus, hoje eu consigo administrar bem a timidez. Mas a adolescente Dely jamais daria uma entrevista como essa! Tio Darcy era um grande músico e logo percebeu que eu tinha um bom timbre de voz. À medida que eu fui crescendo, a família foi me guiando, com muito carinho, para o jongo… Meu tio sempre dedicava um tempo para me ensaiar, então, aos poucos, fui conquistando segurança na minha voz, na minha presença de palco e a timidez foi diminuindo. Tio Darcy foi um artista visionário e comprometido com a cultura negra e carioca. Ao lado de Vó Maria Joana, ele levou o Jongo da Serrinha para o mundo. A nomeação de matriarca me pegou de surpresa! Sou uma mulher negra, uma artista com uma ancestralidade linda e a responsável pela continuidade do sonho e do legado da minha família: manter o jongo vivo e pulsando nas novas gerações!

Diário do Rio: Na última festa do reality BBB 24 (6 de março) o Jongo da Serrinha colocou os participantes para jongarem! Foi uma oportunidade especial para o imenso público que acompanha o programa e também para os confinados entrarem em contato com a nossa autêntica música e dança de terreiro. Para o grupo, como foi a experiência dessa participação no BBB?

Dely Monteiro: O convite para participarmos do BBB 24 foi feito uma semana antes da data de apresentação, então, foi uma surpresa. Para nós, do Jongo da Serrinha, foi um grande prazer e uma experiência maravilhosa!

Livro Jongo da Serrinha 60 anos Jongo é Reza - Entrevista com Dely Monteiro

Diário do Rio: Lançado em 2022, o livro “Conversas de Quintal – 60 anos do Jongo da Serrinha” comemora seis décadas do grupo. A obra foi escrita por você e pela Lazir Sinval, sobrinha neta de Tia Maria do Jongo e coordenadora artística do Jongo da Serrinha. Qual a importância de, pela primeira vez, o próprio Jongo da Serrinha contar sua história?

Dely Monteiro: Em 1995, a pesquisadora Edir Gandra publicou “Jongo da Serrinha: do terreiro aos palcos”. Mas como você bem colocou, nesse livro resgatamos nossas memórias de infância! A ideia do livro nasceu em plena pandemia. Estávamos todos isolados, paralisados… E precisávamos criar! Então, passamos a nos reunir online, com dia e hora marcados, para produzir o livro. Um grande diferencial dessa obra é que a sua construção foi regada por muitas lembranças emocionantes. E também por muitas perdas de entes queridos, vítimas da Covid-19. O que deixou ainda mais evidente a necessidade e a importância desse tipo de registro. O livro também homenageia uma extensa rede de afetos do Jongo da Serrinha, como Vovó Maria Tereza, mãe do Mestre Fuleiro (baluarte da Escola de Samba Império Serrano) e jongueira adorada que faleceu com 115 anos!

Diário do Rio: Na 17ª edição do Rock in Rio (2017), o Jongo da Serrinha participou do espetáculo “Salve o Samba!”, em homenagem ao centenário do samba, e fechou a noite no Palco Sunset. O grupo se apresentou ao lado de ícones do samba de diferentes gerações, como Roberta Sá, Criolo, Martinho da Vila, Jorge Aragão, Alcione e Monarco. Como foi colocar um público roqueiro para jongar e sambar? 

Dely Monteiro: Foi incrível! O Rock in Rio mostrou para o mundo a beleza e a importância das nossas raízes musicais. Esse show foi um ato de valorização da diversidade cultural e musical do Brasil. Foi muito emocionante! Eu só pensava no meu tio (Mestre Darcy). Porque ele adorava formar rodas de jongo maravilhosas no palco. E a roda que fizemos no palco do Rock in Rio foi mágica. Esperamos que o festival promova mais encontros que valorizem a nossa riqueza musical!

Diário do Rio: Em 2002 foi lançado o CD “Jongo da Serrinha”, gravado no quintal da Tia Maria do Jongo. Foi o primeiro disco de jongo lançado no país e contou com a participação especial do Mestre Darcy, para quem o disco foi dedicado. Em 2003, o álbum ganhou o “Prêmio Rival BR de Melhor Disco de Patrimônio”. No ano de 2013, o CD “Vida ao Jongo” foi dedicado à sua Tia Maria do Jongo, que participou das gravações no auge de seus 92 anos. O disco incluiu no repertório pontos de jongo tirados do “caderninho” onde ela anotava suas memórias. Também participaram do disco Zeca Pagodinho, Sandra de Sá e Jorge Mautner. Qual os planos do Jongo da Serrinha para 2024?

Dely Monteiro: Esse ano nosso objetivo é poder investir em obras de manutenção na nossa sede, no Morro da Serrinha, que ficou fechada durante três anos por causa da pandemia. Nossa casa está com muitos vazamentos e quando chove temos que suspender as aulas. O espaço foi cedido pela prefeitura e inaugurado em 2015. Em 2016 ganhou destaque na Bienal de Arquitetura de Veneza como um dos 15 projetos de maior impacto social do país. Temos no momento uma campanha de mobilização de recursos na plataforma Benfeitoria: https://benfeitoria.com/projeto/CASADOJONGO, para quem desejar apoiar a “Casa do Jongo”, que é uma referência muito importante de patrimônio imaterial carioca.

Diário do Rio: A “Casa do Jongo” é coordenada por mulheres, em sua maioria negra, que atende mais de 100 alunos de 5 a 18 anos com aulas de jongo, capoeira, literatura, recreação, cultura popular, alongamento, teatro e percussões (samba, jongo e ritmos brasileiros). Qual a importância da presença feminina no jongo, na “Casa do Jongo” e na própria comunidade da Serrinha?

Dely Monteiro: Graças à Deus hoje a mulher pode ser o que ela quiser. E a gente desbrava! Deus dá força às mulheres para honrarem suas culturas ancestrais e transmitirem os saberes para as próximas gerações. A “Casa do Jongo” é um espaço familiar onde as mulheres têm grande importância e representatividade. E, no jongo, realizamos um trabalho muito democrático e participativo. A conexão das mulheres com a fé é muito forte. Todas as vezes que abrimos uma roda de jongo, como ensinou Vó Maria Joana e Tio Darcy, fazemos as orações, pedimos licença para as Almas Santas Sagradas e Benditas e muita proteção e força para a realização da roda.

“Constantemente eu sinto a presença espiritual da nossa ancestralidade nos nossos shows. Não só eu como muitas pessoas que vão aos nossos espetáculos. Isso é um sinal de bênção pelo respeito e pelo axé que entregamos nas apresentações do Jongo da Serrinha.”

Diário do Rio: Ser mulher. Negra. Artista. No Brasil. Você já sofreu algum tipo de preconceito?

Dely Monteiro: Ser mulher, negra e artista no Brasil… Nossa! Sim, até hoje ainda precisamos atravessar uma estrada cheia de preconceitos. E temos que acabar com isso. Somos todos irmãos. Nascemos em famílias diferentes, mas somos todos iguais. Se dependesse de mim, não existiria nenhuma forma de racismo ou preconceito. Até a palavra racismo é feia, né?! Preconceito é outra palavra muito feia… São palavras que nem deveriam mais existir. Já deveriam estar extintas dos dicionários. Eu sofri preconceito nos tempos de escola, quando eu era menina. Infelizmente, a raça negra, a pele negra, ainda incomoda algumas pessoas. Tenho ojeriza por qualquer tipo de preconceito. Felizmente, a sociedade está avançando nessa luta. No jongo exaltamos a paz e o respeito a todos.

Diário do Rio: Aos 7 anos de idade você era uma menina completamente inserida na sua cultura ancestral. O que você diria hoje para as meninas com essa mesma idade?

Dely Monteiro: Eu diria para elas largarem o celular e brincarem mais. Infelizmente, as mães recorrem ao celular para manterem as crianças quietas. Eu diria para as meninas terem uma infância brincando de boneca, de roda! Eu tive essa infância. Graças a Deus. E gostaria que as crianças se deliciassem com todas as brincadeiras que eu brinquei. Mas, infelizmente, a gente não vê mais crianças brincando… O celular tomou o lugar das brincadeiras e isso é muito triste. A criançada não conhece as brincadeiras que já existiram. A gente ainda vê na comunidade os meninos jogando bola. Mas é muito raro encontrar meninas brincando de roda, de boneca… Gostaria muito de ver o resgate de brincadeiras populares do Brasil, mas não sei se isso será possível. Infelizmente.

Diário do Rio: A menina Dely nasceu e cresceu no Morro da Serrinha, no bairro de Madureira, Zona Norte do Rio. De que forma essa cidade e o bairro de Madureira participaram na construção da mulher Dely?

Dely Monteiro: Ah, Cidade Maravilhosa! Amo de paixão ter nascido nessa cidade. Amo a minha cidade, mesmo ela estando muito perigosa. Não é mais possível andar despreocupada pelas ruas como andávamos antigamente. Eu já visitei outros estados e até outros países fazendo shows, mas sempre me bate uma vontade imensa de voltar logo para o Rio! Porque aqui é a nossa casa. E Madureira é tudo! Amo viver em Madureira. Nasci nesse bairro e moro nele até hoje. Madureira é um caso de amor. E onde vivi muitos amores!

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Jornalista há 30 anos e carioquíssima. É amante do Carnaval e de boas histórias. Contadas no pé sujo, no ponto de ônibus, num jogo de cartas com idosos em alguma praça arborizada do Rio...Criadora de filho, conteúdo, arte, afeto e ponte!

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