Jorge Jaber – Dependência Química: Superando o Estigma para um Diagnóstico Preciso

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A dependência química, infelizmente, ainda é encarada por muitos como uma mera fraqueza de espírito, uma fragilidade psicológica, um problema cuja solução se encontraria na simples força de vontade. Nada mais falso:  trata-se de uma doença, identificada como tal por instituições como a Organização Mundial da Saúde e descrita, em detalhe, tanto na 5ª. edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) quanto na 10ª. da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), os sistemas oficiais de registro de enfermidades utilizados mundo afora.

Estamos, portanto, diante de um distúrbio, com causas orgânicas – entre elas, a predisposição genética – e emocionais, como traumas e histórico de abuso. Esta noção é extremamente importante para proteger o personagem mais vulnerável desse enredo – o portador de dependência – do preconceito que envolve o tema e faz da vítima o algoz, vista como uma pessoa de comportamento desregrado e boêmio, incapaz de controlar a própria vida. Não é difícil imaginar os danos desse estigma na esfera afetiva, profissional e até familiar do enfermo – além, claro, do impacto sobre sua autoestima.

Neste cenário, colar indevidamente num indivíduo o rótulo de dependente é um gesto no mínimo irresponsável, perigoso até, mesmo quando fruto das mais belas intenções. Como, por exemplo, nas diabetes ou cardiopatias, o diagnóstico da dependência só pode ser estabelecido por um profissional especializado, com normas rigidamente determinadas, sem achismos ou conclusões apressadas. Esses critérios estão descritos tanto no DSM-5 quanto na CID-10, e dão embasamento científico para uma avaliação consistente de possíveis quadros do delicado transtorno.

O primeiro parâmetro para avaliar se estamos diante ou não de um caso clínico é o padrão de consumo das substâncias.  Utilizá-las em quantidades maiores do que o planejado – “ia tomar só um chopinho, acabei perdendo a conta” – ou por mais tempo do que se pretendia – “quando vi já eram três da manhã” – indica um descontrole em relação a elas, também mostrado nas frequentes e sempre frustradas tentativas de reduzir ou controlar o uso – “agora é para valer, não fumo mais”. Esse desejo persistente, mas nunca realizado de retomar as rédeas da vida também é sinal de alerta.

O terceiro ponto é o tempo dedicado à obtenção – “demorei porque tive que rodar 30 quilômetros para conseguir cigarro” –, uso – “bebi a noite toda” – ou recuperação – “nem consegui trabalhar no dia seguinte” – dos efeitos da droga. Ou seja: comandado pela dependência, o enfermo perde o domínio da própria rotina. O “craving”, ou “fissura”, desejo intenso e compulsivo pela substância, independente da dose – “hoje eu preciso de um drinque depois do expediente”, também deve ser levado em conta, pois é mais uma mostra do papel central da droga no cotidiano do portador do transtorno.

Essa submissão também se manifesta pelo abandono de atividades sociais e recreativas, momentos antes prazerosos e recompensadores que aos poucos vão se tornando cada vez mais raros. Outro sinal é a crescente incapacidade de cumprir tarefas no trabalho, em casa ou na escola, por falta de tempo, interesse ou mesmo disposição física. Independente desses percalços e de problemas cada vez mais sérios e frequentes nas relações interpessoais, o padrão de uso se mantém, chegando até a aumentar, numa ilusória válvula de escape para os dissabores. Um círculo vicioso, enfim.

O desenvolvimento de tolerância, caracterizada pela necessidade de doses cada vez maiores da substância psicoativa para atingir os efeitos desejados, e a entrada em estado fisiológico de abstinência – quando o consumo cessa ou se reduz abruptamente – também são critérios de análise. É bom lembrar que, nestas condições, o doente muitas vezes busca uma substância alternativa para aliviar ou evitar os dolorosos sintomas da interrupção do uso, o que não raro mascara os sinais da privação da droga. Isso, claro, pode levar a equívocos ou omissões no diagnóstico.

A ocorrência de uma ou mais dessas situações não indica necessariamente um quadro de dependência. De acordo com o DSM-5, ela é formalmente caracterizada quando pelo menos três dos pontos acima descritos são verificados no período de um ano antes da consulta médica. O Manual também especifica os níveis de gravidade do distúrbio: leve, quando apenas três critérios são apontados; moderado – até cinco – e daí para cima, grave. A partir desses dados, determina-se a abordagem mais adequada para cada caso, o que se reflete na eficiência e rapidez do trabalho.

Vale destacar que esses critérios são válidos para várias substâncias, como álcool, cocaína, maconha e opioides e cannabis, entre tantas outras, e foram estabelecidos tentando ao máximo abranger os incontáveis impactos do uso abusivo de drogas sobre a saúde física, mental e social, se tornando uma ferramenta valiosa para os profissionais de saúde. Há, certamente, outros elementos para a avaliação, mas esses parâmetros dão mais segurança e até credibilidade ao diagnóstico. Isso acaba estimulando a adesão do enfermo ao tratamento, o que certamente aumenta suas chances de recuperação.

Jorge Jaber é é psiquiatra pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), membro da Academia Nacional de Medicina

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