Revelados há poucos dias, detalhes sobre os afastamentos do trabalho provocados por doenças como ansiedade e depressão no Brasil em 2024 são mais um indício de que o país enfrenta uma epidemia silenciosa de distúrbios mentais. Um quadro até certo ponto esperado, pois os profissionais da área vêm alertando há anos – principalmente a partir da Covid-19 – sobre essa possibilidade. Um detalhe dos dados revelados pelo Ministério da Previdência Social, porém, não estava previsto: uma das categorias mais afetadas pelo fenômeno é justamente a que deve combater seus efeitos – os trabalhadores da saúde.
Os números evidenciam a dimensão do problema. Em 2024, das cerca de 3,5 milhões de licenças médicas aprovadas pelo INSS no país, 472 mil foram motivadas por questões de saúde mental, contra 283 mil em 2023. Um aumento, portanto, de 68%. As causas mais comuns são a ansiedade, com cerca de 140 mil casos, e a depressão, com quase 115 mil. Dados provavelmente subestimados, pois o estigma que ronda essas doenças leva muitas pessoas a esconder seus sintomas e a ignorar a necessidade de tratamento.
Entre elas, paradoxalmente, integrantes do setor de saúde, muito propensos a problemas emocionais. Submetidos a uma rotina exaustiva e estressante, repleta de cenas de sofrimento e morte, eles têm altos índices de distúrbios psíquicos. Segundo estudo da Afya, grupo dedicado à educação no setor da saúde, 39,8% dos nossos médicos sofrem de algum distúrbio do gênero. Esse número guarda um detalhe significativo: duas em cada três pessoas afetadas são mulheres – resultado, entre outros fatores, da dupla jornada, em casa e no trabalho, que muitas ainda encaram.
Há um ponto ainda mais perturbador nesse quadro: as clínicas psiquiátricas têm registrado um forte aumento nos pedidos de internação de profissionais da área após tentativas graves de suicídio – ou seja, casos que exigiram cuidados intensivos de ressuscitação. Mulheres, na grande maioria, quase todas com diagnóstico prévio de depressão ou ansiedade devido ao impacto físico e emocional da pandemia, mas que, por um mecanismo psicológico de autodefesa, se negam a aceitar a doença e a buscar ajuda. Um processo que muitas vezes leva ao gesto extremo de tirar a própria vida.
Este cenário, na verdade, não é de todo surpreendente. Cerca de 12% dos médicos já pensaram em se matar, de acordo com pesquisa da Associação Brasileira de Psiquiatria, e a taxa de suicídios entre eles é 2,5 vezes maior do que a da população em geral, segundo estudo da Universidade de São Paulo. O sexo feminino, novamente, é o mais atingido. Nos Estados Unidos, por exemplo, o índice de mortes autoprovocadas entre médicas é 130% mais alto do que entre outras profissões.
É hora de discutir o assunto. Um sistema de saúde público de qualidade exige, além da estrutura física, profissionais bem preparados e com as condições adequadas para desenvolver seu trabalho. Isso inclui uma questão nem sempre levada em conta: a segurança. Agressões e ameaças por parte dos pacientes não podem ser toleradas. Muito menos as invasões de consultórios e até de centros cirúrgicos por políticos que, quase sempre em busca de notoriedade, alegam seu dever de fiscalizar para constranger esses trabalhadores, expondo-os a ainda mais riscos e dificuldades.
Proteger a integridade dessas pessoas é uma tarefa urgente, que não passa apenas pelo firme combate a essas violências. Elas prestam um serviço valioso, não podendo ser punidas pelas históricas deficiências da rede de atendimento, e o público deve ser conscientizado disso, para cobrar seus direitos dos verdadeiros responsáveis: os governos de todas as esferas. Além disso, é preciso estimular esses profissionais a procurar, eles também, tratamento para os transtornos mentais, que devem ser encarados por todos como o que realmente são: doenças que podem atingir qualquer um de nós.
*Jorge Jaber é psiquiatra pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), membro da Academia Nacional de Medicina