Jorge Jaber: Drogas, um debate necessário sob a luz da ciência

'Uma discussão, se possível, restrita à ciência, livre de interferências religiosas, políticas e econômicas e do falso moralismo e preconceitos que não raro a contaminam, num quadro em que o enfrentamento dos problemas é sempre adiado'

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Fotos: Daniel Martins - Diário do Rio

Duas notícias recém-chegadas dos Estados Unidos – uma sobre o aumento do consumo de maconha, outra sobre restrições ao tabaco – mostram a complexidade da questão das drogas, lícitas ou não, e a urgência de um debate profundo e equilibrado sobre o assunto no Brasil. Uma discussão, se possível, restrita à ciência, livre de interferências religiosas, políticas e econômicas e do falso moralismo e preconceitos que não raro a contaminam, num quadro em que o enfrentamento dos problemas é sempre adiado.

Vamos, portanto, às tais notícias. A primeira exibe dados colhidos em 2022 pela Pesquisa Nacional sobre Uso de Drogas e Saúde, que desde 1971 se debruça sobre os hábitos dos norte-americanos. Nela, vemos que 17,7 milhões deles afirmaram consumir maconha diariamente, ou praticamente todos os dias, enquanto 14,7 milhões disseram beber com a mesma frequência. Foi a primeira vez em que o uso diário declarado da planta superou o de álcool, num aumento de 15 vezes em relação ao ano de 1992.

A segunda vem de Brookline, no Massachusetts, onde uma lei que proíbe a venda de produtos de nicotina a pessoas nascidas a partir de 1º de janeiro de 2000, aprovada em 2020, foi referendada em março pela mais alta corte do estado. A decisão, unânime, veio depois de uma batalha judicial travada pelos vendedores do produto, e dá força à ideia de uma geração livre do tabaco, uma estratégia já tentada ou em estudo em países como a Inglaterra e Nova Zelândia. O tabagismo, vale lembrar, é a principal causa de doenças, incapacidades e mortes evitáveis nos EUA, e tira mais de oito milhões de vidas a cada ano no mundo.

Curiosamente, Massachusetts é um dos 24 dos 50 estados do país – além da capital, Washington – em que o uso recreativo da cannabis foi descriminalizado. A legalização, aliás, seria justamente um dos fatores do aumento no consumo da planta, facilitando o acesso ao produto e deixando os usuários mais propensos a relatar seus hábitos. Independente disso, é interessante constatar que, numa cidade em vias de banir o cigarro – e há outras na mesma rota –, é permitido portar ou fumar maconha.

À primeira vista, parece uma contradição: a cannabis, embora ainda não tenha relação comprovada com o câncer de pulmão, provoca problemas respiratórios e uma série de outros danos à saúde física e mental. Ela prejudica o desenvolvimento cognitivo e aumenta o risco de depressão, ansiedade e psicose, principalmente nos jovens – faixa etária que a iniciativa de Brookline pretende, com toda razão, ver afastada do tabaco. Por que, afinal, a complacência com uma, em contraste com tamanho rigor diante da outra?

A resposta pode estar no pragmatismo com que os americanos encaram o assunto. Altamente letal, o fumo perdeu há tempos um certo glamour rebelde e contestador que a maconha ainda ostenta em setores influentes, ainda que minoritários, da sociedade. Além disso, a indústria da planta vem oferecendo lucros expressivos e crescentes, e seu consumo, como mostra a pesquisa, cresce em ritmo acelerado. Neste cenário, brigar contra a legalização da planta, a despeito da resistência de boa parte da população, parece ser uma luta que muitos países consideram inglória.

Essa postura pode servir de exemplo para o Brasil. Não se trata, aqui, de uma defesa da legalização da maconha. Pelo contrário: num país com as carências do nosso serviço de saúde, aliadas à falta de estrutura de fiscalização, o uso por crianças e jovens só tende a crescer, com efeitos certamente perversos. Há outros pontos a considerar, inclusive na área da segurança pública, mas devemos, com urgência, encarar a questão de frente, com campanhas de esclarecimento e prevenção, fortalecimento da rede de assistência médico-hospitalar e, repito, uma ampla discussão sobre um problema com o qual cedo ou tarde precisaremos lidar.

*Jorge Jaber, psiquiatra, membro fundador e associado da International Society of Addiction Medicine, associado da New York Academy Of Sciences, da American Psychiatric Associations – APA e da World Federation Against Drugs – WFAD

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