Na última terça-feira, dia 15 de fevereiro, a cidade de Petrópolis foi acometida por mais uma tempestade devastadora. Logo no dia seguinte, diante da devastação, foi confortante ver políticos se solidarizando com os desabrigados e com os familiares das vítimas. Mas há que se destacar que essa postura é necessária, mas não suficiente. Eles precisam também se responsabilizar pela falta de políticas de habitação que hoje sofre o Estado do Rio de Janeiro. Quantos desses políticos eleitos denunciaram a ocupação irregular? Quantos prefeitos se calaram diante dos alertas de risco ou demonstraram se preocupar com o volume de lixo gerado pelos moradores das encostas? Ontem a tragédia acometeu Petrópolis; e amanhã? Onde será?
É preciso ver o problema para além do fatídico dia em que dezenas de vidas são perdidas soterradas. Na verdade, ele se arrasta ao longo das vidas que são construídas sob o pilar do risco, da incerteza, do medo de perder, da noite para o dia, tudo que mais importa.
A manutenção de lares com infraestrutura inadequada para a segurança de seus moradores é um tipo de violência que precisa ser encarada. Tal agressão à sobrevivência humana não será mitigada com meros auxílios considerados: ou direitos sociais do Estado, ou benefícios caritativos e filantrópicos. Basta de concessão de “cala-boca” aos miseráveis, campo fértil para o clientelismo, coronelismo e patrimonialismo. É preciso encarar o problema da habitação de forma comprometida com a segurança jurídica do patrimônio, assim como com a segurança física dos seus moradores.
Nas décadas de 1930-1960, o legislador nacional já identificava a necessidade de transformação do arcabouço legal para atender uma nova realidade econômica e social em razão de urbanização e industrialização, contudo sua maior preocupação se dava no campo da ocupação do território e de mecanismos para oferecer segurança jurídica a propriedade privada. Naquele momento, era crescente o loteamento de terrenos para venda com preço parcelado, mas o Código Civil de 1916, marco legal à época, deixava sem amparo numerosos compradores de lotes. Buscando-se trazer segurança às aquisições, o Decreto-lei nº 58, de 1937 passou obrigar o cumprimento de normas sobre identificação do loteamento e de cada lote em registro imobiliário, assim como, adotou-se o contrato de compromisso de compra e venda de lotes, finalmente protegendo os futuros proprietários contra a ganância das empresas loteadoras
Anos depois, em 1979, entrou em vigor a Lei 6.766, que foi inovadora na regulamentação do loteamento, admitindo normas complementares de cada Estado e Município e do Distrito Federal. Se por um lado a lei deu poder aos entes federativos para acolherem suas especificidades no que tange o planejamento urbanístico; por outro deixou claro as áreas impeditivas para moradia, entre elas, terrenos: alagadiços e sujeitos a inundações; que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde pública, sem o prévio saneamento; com declividade acentuada; e em áreas de preservação ecológica. Ou seja, a legislação passou a se preocupar também com áreas que não cabiam loteamento tampouco moradia.
O Estatuto da Cidade, que ordena o desenvolvimento das funções sociais da cidade, veio em 2001, marcando uma entrada no século XXI com arcabouço legal que respalda a intervenção do ente público no planejamento da ocupação do solo, como uma forma de resguardar direitos fundamentais relacionados à moradia.
Por esse histórico legal, que fundamenta um maior controle da ocupação desordenada do espaço urbano, é lamentável constatar o crescimento das construções sem condições ambientais. As casas das pessoas mais humildes, na realidade urbana da maioria dos municípios, merece especial atenção de toda a sociedade, com participação das comunidades de moradores, científicas, universitárias e, particularmente das esferas do Poder Estatal.
A lei respalda, mas a vontade política não existe.
É urgente que os prefeitos encarem uma política de habitação séria, que parem de se beneficiar com o curral eleitoral gerado a partir da ocupação irregular. Não resolveremos o problema do déficit habitacional no curto prazo, mas existem estratégias consistentes que devem ser iniciadas:
- Monitoramento das cotas limítrofes: Acompanhar todos os pontos mais altos das encostas ocupadas para evitar novas ocupações. Concomitantemente, desocupar gradualmente, de cima para baixo, as casas construídas irregularmente.
- Abertura de clarões em áreas de maior risco: identificar as áreas instáveis nas encostas e desocupar, abrindo clarões no espaço geográfico. Nesses clarões plantar vegetação (como a vetiver) com raízes maiores que ajudam na fixação do solo.
- Instituir programas de coleta de lixo mais eficazes nas comunidades que ocupam encostas: garantir equipes treinadas de garis comunitários capazes de transitar no terreno e submetidos a monitoramento de qualidade.
- A dignidade significa desenvolvimento integral, pois favorece o mínimo existencial nos aspectos econômico, social e ambiental. Uma ocupação do solo ordenada é ponto inicial da construção de uma cidadania digna. A partir dela pode-se desenvolver uma rede de saúde, segurança, mobilidade e educação capilarizada e eficaz.
Não podemos esperar mais um verão.
Artigo escrito em parceria com o Dr. Lincoln Antônio de Castro, professor da UFF e promotor de Justiça aposentado.