Katia Magalhães: Lula, sua democracia e sua “Resistência” sobem a rampa

A advogada Katia Magalhães, colunista do Instituto Liberal, fala sobre a posse de Lula, sua cadela Resistência e seu significado

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Foto: Ricardo Stuckert

O último dia 1º de janeiro não ficará marcado em nossa memória coletiva apenas como o encerramento dos festejos de fim de ano, ou como a data do fastio após ceias fartas e semanas ociosas. A vedete de ontem foi a posse de Lula, que, após dois mandatos, a eleição de uma sucessora e um breve período como detento, condenado em três instâncias por saques ao erário, retomou o cargo de primeiro mandatário da nação, em cerimônia que dividiu a sociedade entre execradores e idólatras do empossado. Afinal, depois de uma vitória em eleição apertadíssima, marcada por forte polarização e muita censura, seria ingênuo crer que uma fala em tom supostamente humanitário e a escolha de meia dúzia de representantes das ditas minorias para o rito de transmissão da faixa presidencial pudessem curar feridas profundas, e cada dia mais cruentas.

Dirigindo-se ao Congresso Nacional, Lula começou seu discurso exortando a democracia que, em suas palavras, teria prevalecido, apesar das “mais violentas ameaças à liberdade do voto”, e recordando, emocionado, sua atuação como deputado constituinte em 88. Adoraria saber a que ameaças teria se referido o empossado, se os maiores atentados à liberdade de expressão e, por conseguinte, à livre formação da própria convicção política do eleitor tiveram as digitais da nossa elite togada, por ele cumprimentada e louvada. Tampouco compreendo tamanho orgulho referente à sua votação, durante a redação da Carta Magna, de pautas retrógadas, tais como a estabilidade no emprego, a nacionalização do petróleo e os pilares de uma legislação trabalhista anacrônica. De lá para cá, Lula ganhou apenas fios grisalhos no cabelo e na barba, e desperdiçou os anos para adquirir uma gota a mais de sabedoria.

Em seguida, reafirmou seu alegado compromisso no combate à fome, sem dúvida, ainda um flagelo real no país, não tendo, porém, se dignado a detalhar o modus operandi de um feito hercúleo como esse. Insistiu em sua condição originária de “representante da classe trabalhadora”, em um aceno ao fetiche marxista e ultrapassado da luta de classes como força motriz da História, e como se o seu berço, ou a falta deste, o credenciassem, por si só, para dirigir a nação. Por óbvio, não perdeu a oportunidade de promover o “nós contra eles”, ao sustentar, bem à luz da velha estética do oprimido à la Paulo Freire, que “a liberdade que eles pregam é a de oprimir o vulnerável, e massacrar o oponente”.

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Lula ainda enfatizou o chamado diagnóstico catastrófico sobre a gestão anterior, que teria esvaziado “os recursos da Saúde. Desmontaram a Educação, a Cultura, Ciência e Tecnologia. Destruíram a proteção ao Meio Ambiente”, e subestimou, assim, a memória de todos nós que testemunhamos, em pleno lulopetismo, o desabamento dos nossos índices de educação medidos pelo PISA, a eterna precariedade no atendimento do SUS, o esfacelamento de um resto de cultura e a ascensão de uma subcultura dita “de periferia”, e nossa contínua dependência de tecnologia estrangeira. Isso sem falar na escandalosa calamidade na usina de Belo Monte, marco de devastação ambiental e etnocídio da era lulista.

Como de hábito, o novo mandatário lançou mão de um extenso palavrório para justificar a criação de tantos novos ministérios – como se a construção de estamentos burocráticos adicionais fosse a chave para a resolução dos temas aflitivos para o país! -, e buscou capitalização política sobre os cadáveres da pandemia de COVID-19, apesar de ter, lá atrás, elogiado a natureza pela criação do vírus. No tocante ao tema, exaltou o SUS, embora ele mesmo só recorra a tratamentos em um dos hospitais mais caros de São Paulo, e declarou sua firme intenção de revogar o teto de gastos, sinalizando toda a irresponsabilidade fiscal que nos assolará nos próximos anos.

E, como fechamento de seu discurso, retomou o mote inicial de sua suposta preocupação com a “democracia para sempre”, colocando-se como contraponto de amor ao ódio, de verdade às mentiras, e de legalidade ao terror e à violência. Em suma, um verdadeiro garante da nossa ordem democrática, ou, talvez, a própria democracia encarnada.

No entanto, nosso empossado líder fez questão de omitir que democracia não é o regime de paz, harmonia e entendimento entre todos. Antes, pressupõe a existência dos mais diversos conflitos de interesses a serem solucionados dentro de um sistema de instituições em funcionamento, por membros da coletividade previamente investidos de poderes para tanto, e segundo normas anteriores, definidas por representantes eleitos. Portanto, em qualquer sociedade minimamente saudável, os inúmeros litígios, a partir do momento em que inviabilizam o diálogo ou até o convívio entre as partes, ingressam nas instâncias de resolução, sejam elas a mediação, a arbitragem ou as cortes de justiça, e delas saem compostos, sem fissura no tecido social.

Entre nós, onde a malha da sociedade já está mais que rota, surge alguém que avoca para si a condição de pacificador e reconstrutor do país. Nada mais antidemocrático, pois nenhuma pessoa pública ou instituição de Estado pode compreender em si todas as dessintonias de uma estrutura social, a menos que siga o “tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”, aplicável não só ao regime instaurado pelo autor do lema, como também a todas as demais formas de totalitarismo.

Por fim, não poderia encerrar esse texto sem algumas linhas sobre um simpático animal que ontem acompanhou a subida da rampa. Me refiro a uma cadelinha, ao que dizem, encontrada em frente à superintendência da PF que hospedou o então presidiário Lula, e, após a soltura do detento, adotada pelo casal presidencial, e batizada de “Resistência”. Lula, o velho animal político de sempre, que fez palanque até nos sepultamentos de D. Marisa e de seu neto, não poderia ter poupado o bichano da sua instrumentalização.

Ora, o conceito de resistência alude a uma reação a ato injusto por parte de alguém que tenha invadido indevidamente a nossa esfera de autonomia. Bem distante da imagem de “litígio”, pretensão resistida e solucionada dentro de um sistema institucional, resistência pura e simples evoca uma fase de inexistência ou inoperância das instituições, com os seres humanos de volta ao estado de natureza. Tanto assim que resistência integra o universo da guerra, figurando como resposta a atos de força praticados pelo atacante, no intuito de submeter o defensor (ou resistente) às suas vontades. Nas palavras de Clausewitz, interpretadas com mestria por Raymond Aron: “defender-se é deixar ao outro a iniciativa do ataque (ou da ofensiva), e esperá-lo com vistas a rechaçá-lo.”       

Não à toa o nome da cadelinha foi escolhido, a dedo, para simbolizar o rechaço ao que teria sido, no imaginário deturpado dos adoradores de Lula, uma ofensiva de um “sistema elitista contra uma liderança popular”. A opção por um inocente animalzinho tampouco foi aleatória, pois representa a doçura e a pacificação, em oposição ao pretenso ódio reinante até então.

Tendo em mente o Quincas Borba, no qual o protagonista que deu título ao romance machadiano havia legado sua vultosa herança a um amigo, sob a condição de que este cuidasse do cãozinho do falecido, também ele Quincas, me pergunto se, a exemplo de líderes do passado, Lula, já em idade avançada, poderia fazer algum tipo de “testamento político”, uma mistura de memórias e compilação de últimas vontades. E indago ainda se, em tal situação, ele imporia a seus herdeiros a administração de cuidados e carinho à Resistência.

Nessa hipótese, dependendo das circunstâncias em que viesse a ocorrer a sucessão, talvez Resistência pudesse ser redimida de seu apelido tão belicoso, para ser identificada por um conceito mais afeito a civilizações ordeiras e regidas pelo Estado de Direito. “Liberdade” seria um belo nome para um animal que pudesse vir a desenvolver todas as suas potencialidades, sob a tutela de lideranças modernas e democráticas, que não precisassem alardear suas qualidades enquanto tais.

No livro, depois de fazer companhia ao tolo Rubião, que morre louco, o pobre Quincas, o cão, também é fadado a um triste fim. Torço muito pelo meu país, e, ainda mais, pelo futuro da inocente cadelinha!

Kátia Magalhães é advogada e tradutora jurídica e colunista do Instituto Liberal

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