É propriedade do ser humano dotar-se de ritmo. Pulsar um movimento internamente – como, por exemplo, a respiração e o bombeamento cardíaco – ou externamente, que faça o corpo tomar alguma direção, que o retire seu lugar e que dê funcionamento a algum dispositivo ou faculdade é comum a todo ser humano em posse de sua saúde física e espiritual. É como se, em cada humano saudável, houvesse uma música interna que pusesse as forças em movimento sob certa mecânica e acústica. Somos música – vibramos som e intensidade. Malgrado isso, nem todos são canção; pois, para que assim seja, é preciso antes de tudo ser e viver a melodia.
Na engenharia da Música, a melodia representa o composto por meio do qual a canção se realiza. Provinda do grego, a palavra “melodia” significa “canto”, diferenciando-se do ritmo e da harmonia, que são os outros dois elementos básicos da Música. Enquanto o ritmo é a pulsação que marca o andamento sonoro e define aos ouvidos que gênero musical está presente; e a harmonia, por sua vez, é o campo que agrupa uma variedade de tons tocados simultaneamente, formando uma relação, a melodia é o fluxo contínuo que dá movimento aos acordes postos num certo ritmo. Apoiada pela base rítmica e construída pela relação harmônica, a melodia é sinônimo de fluidez, de duração indefinida; e, graças e essa continuidade, um canto toma corpo.
Luiz Carlos dos Santos, o preto franzino de olhos sobressaltados, nascido no morro do São Carlos é a corporificação dessa fluidez musical da qual a melodia é a expressão. O filho de seu Osvaldo é o Luiz Melodia das canções em ritmo de samba, blues e jazz que nos afetam através de uma voz macia, sensual e poderosa. Luiz é o carioca que exemplifica o que dissemos acima: o fato de sermos música, em corpo e alma. No entanto, poucos dentre nós têm o dom maravilhoso de, ao mesmo tempo,conseguir unir acordes, de causar uma ressonância percussiva, rítmica; ou seja, apenas o músico, aquele que vive desse ofício, que diariamenterespira esse oxigênio especial é capaz de ser um homem–melodia capaz de cantar, ritmar e harmonizar seus amores e suas dores.
Melodia, o Luiz, cantou uma cidade, o Rio, partindo do mesmo conteúdo que outros artistas. Mas não usou a mesma forma. Em outro estudo sobre esse tema, reconheci em Caetano Veloso uma necessidade de formar uma paisagem carioca, de nos empurrar de dentro para fora na tentativa de nos fazer contemplativos diante do Rio. Luiz Melodia compõe um Rio não de fora, mas de dentro, apenas. Por isso, o seu procedimento é lírico e não épico. As canções de Luiz falam de um corpo que vive e transita na cidade, da mesma forma que os acordes vivem e transitam para formar a matéria melódica. Na lírica de Luiz, há mais o sujeito carioca do que propriamente o Rio em si; ou, antes, há o Rio, subjetivado pela lente do corpo que o absorve.
A lírica do cantor se exprime de muitas maneiras para falar não tanto da cidade, mas de si enquanto corpo na cidade. Em uma das expressões presentes nas letras de Luiz Melodia, temos o cantor romântico que morre de amores na sua ingênua juventude. A dialética do sentimento consiste em amar urgentemente enquanto se quer sofrer. Mas ele precisa do Rio como testemunha dessa entrega, como se o amor só fosse possível a três; ou seja, entre o amante, a amada e a cidade. Mas, ainda assim, em “Estácio, eu e você”, reconhecemos traços de um Rio pouco cúmplice com o namoro, pois na qualidade de cidade grande, os riscos se encontram em cada esquina: “vamos passear na praça enquanto o lobo não vem”.
Ainda na linha romântica, que atravessa boa parte de sua obra, Luiz canta o carioca apaixonado, cujo amor é o acorde musical que vibra em compasso com o samba, com o “passo do passista”. O cenário desse amor é o Estácio, é o morro, como é explícito em “Estácio, holly Estácio”. Esse amor dói, machuca, uma vez que enfrenta a realidade dura de uma cidade cujo magnetismo coage o apaixonado a viver e a se enganar; porém, mesmo nessas condições, é uma espécie de amor que ensina, como é dito em “Dores de amores”. E, sob o efeito da lição da dor, o poeta transita por aí, desiludido, com o violão embaixo do braço e coma “donzela” em mente.
Na outra face lírica do poeta o Rio transparece no corpo do carioca como estratégia de vida; e, em Luiz Melodia, esse corpo tem um viço, uma animalidade felina fundamental, que o enche de forças instintivas suficientes para viver no meio da urbe feroz. Feito a melodia, esse gato se lança na “estrada da vida”: fluindo “na favela, onde for”.Esse corpo sem dono, é gato, feito na medida de uma vida marginal. Ademais, como todo felino, o carioca é a elasticidade e a versatilidade de quem sabe como se ajustar a qualquer obstáculo. Luiz quer dizer que o carioca anda “no salto”, escaldado, sempre pronto a agir e a escapar, quando for necessário. “Sete vidas tenho, para viver. Sete chances tenho, para vencer”, canta Luiz em “Negro gato”.
O transitar do carioca é como a melodia na música: uma correnteza sutil e envolvente que não encara a vida como algo absoluto e categórico, mas que a flexibiliza. Existem, então, caminhos e alternativas para que a cidade se torne algo respirável, mesmo que vida do carioca que ocupa o morro e a periferia esteja ameaçada por aqueles que querem fazer da pele do gato couro de tamborim. Numa cidade dessas, o estado de alerta é regra primordial; e as canções de Luiz, ainda que não citem diretamente o Rio de Janeiro, mantêm implícitas essas advertências.
Além do mais, esse corpo felino, astuto e acrobata, é característico por sua coloração exuberante de ébano. O corpo felino é negro, é fisiologia carregada pela pecha do acaso, “o peregrino sábio dos enganos” que desvia do mover perverso da “sombra da neurose” de uma cidade cheia de ardis, como Luiz canta em “Ébano”. Apesar disso, o carioca felino, resistente aos movimentos que querem suprimir sua história, é “forte como cobra coral”; e, tal como a primavera, tem a força de renascer e de reaprender, brotando novamente “em qualquer local”.
Gostaria de saber quem toca a a harmônica na música “Estácio Holly Estácio” ?