Luciano Alberto de Castro: Rua dos Latoeiros

Cronista fala sobre a literalidade das ruas do Rio de Janeiro

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Movimentação na Rua Gonçalves Dias, no Centro do Rio - Foto Cleomir Tavares/Diário do Rio

Literatos maranhenses parecem encontrar no Rio ambiente propício para desenvolverem a sua arte.  Exemplos disso temos em Coelho Neto, Humberto de Campos, os irmãos Aluísio e Artur Azevedo e, mais recentemente, Ferreira Gullar. Entretanto, creio que o pioneiro desse time de craques seja mesmo Gonçalves Dias, que aportou na corte de Pedro II em 1846 e nela viveu até 1854 — período em que publicou quase toda a sua obra poética.

Embora tenha se notabilizado como poeta, Gonçalves Dias escrevia uma prosa aguda e inteligente, que é pouco conhecida. Vejam o trecho da carta que remeteu a um amigo assim que chegou ao Rio e se aboletou num dos hotéis mais luxuosos da cidade: “Estou, pois, num belo hotel, L`Univers, de Mme Moreau, minha patroa, de seus 30 a 40 anos com presunção de coquette, e ainda fresca como um pé de alface colhido há três dias, porém há três dias mergulhado n’água.” Foi com essa verve espirituosa — meio mordaz, meio erudita — que o autor se tornou um destacado cronista fluminense na era pré Machado de Assis.

Por falar no bruxo, este devotava especial admiração ao bardo. Numa crônica de 1893, Machado conta que chegara, debaixo de chuva, à Rua Gonçalves Dias pra pegar o bonde de Botafogo e depois se lembrara de que o ponto havia sido transferido para a Senador Dantas. A zanga só não fora maior porque ocorrera justo no dia 10 de agosto, aniversário natalício do homenageado pela rua.  Machado relembra seus encontros com o ídolo: “Vi Gonçalves Dias duas vezes. Da primeira adivinhei quem era, não sentindo mais que o passo rápido de um homenzinho pequenino. Era ele, o autor da Canção do exílio, que eu soletrara desde os dez anos…”         

Quando chegou ao Rio, no viço dos seus 23 anos, o vate maranhense encontrou uma cidade de 250 mil habitantes, escravista, desorganizada, fétida, segregacionista e permeada de belezas naturais estonteantes.  Aquele “purgatório da beleza e do caos”, em meados do século 19, era o cenário a ser vivido e traduzido pela hábil pena do moço que saracoteava por bailes, teatros, récitas, parques, ruas, circos e bordéis. Essas incursões atentas aos recantos e eventos citadinos — sobretudo ao bas-fond — geraram um inestimável material que foi convertido nas deliciosas crônicas urbanas publicadas originalmente no Correio Mercantil. A atividade folhetinesca do poeta Dias é uma preciosidade que merece ser revisitada.

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Esta crônica me veio há uns dois meses quando eu (assim como Machado) estava indo tomar o bonde. Não chovia. Era uma bela quarta-feira quando eu caminhava pela Rua Gonçalves Dias em direção à estação dos bondes da Rua Lélio Gama. Sem pressa de chegar ao destino, eu ia descendo a rua com calma, pisando solenemente o calçamento de pedras, como se fosse um fidalgo. Eis que ao lado de um sobrado azul, avistei o nº 56. Ora, ora, se não era o endereço do poeta na famosa Rua dos Latoeiros, que passaria a receber o seu nome em 1865. A numeração devia ser outra, mas pouco importava, eu já ganhara o mote.

Antônio Gonçalves Dias nasceu em 10 de agosto de 1823, portanto em 2023 se completarão 200 anos do seu nascimento. É oportuno que os leitores cariocas se lembrem dele, que releiam seus poemas e, principalmente, que redescubram suas crônicas — testemunho raro de um Rio oitocentista. Quando o brigue Ville de Boulogne naufragou nas costas do Maranhão e tirou a vida do escritor de 41 anos, o Brasil perdia o seu primeiro grande poeta, e também o seu primeiro grande cronista.

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