Luciano Alberto de Castro: Uma rosa na cara do machismo

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Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

O mês de agosto começou bem. Logo no primeiro dia, o STF decidiu pelo placar de 10 a 0 extirpar a legítima defesa da honra dos tribunais brasileiros. A tese “esdrúxula e malfadada” — nas palavras do Fachin — foi declarada inconstitucional. Isso significa que advogados não mais poderão se apoiar nela pra defender homens que cometeram feminicídio. E mais: a decisão vai possibilitar que tribunais de justiça aceitem recursos contra decisões de júris nas quais o artifício foi evocado. Assassinos confessos que se beneficiaram dessa misoginia institucionalizada devem estar dormindo à custa de zolpidem.

Quando li que o STF estava trabalhando nessa matéria, achei estranhíssimo. Ainda se discutia legítima defesa da honra em 2023? Pra mim esse era um conceito ultrapassado, sepultado lá nos anos 30 e 40. Lembrei-me logo de Ganga Bruta. No clássico de Humberto Mauro, de 1933, o protagonista mata a esposa na noite de núpcias ao descobrir que ela não era mais virgem. O marido enganado foi julgado e absolvido por unanimidade no tribunal do júri, sob alegação de LDH. Normal pra época, mas até hoje convivíamos com isso? Interessei-me pelo assunto. Consultei os entendidos, notícias antigas, dissertações novas, vídeos, reportagens. Nadei num mar de informações até chegar à Praia dos Ossos.

Estou falando da praia de Búzios, mas também do podcast Praia dos Ossos. Narrado pela voz plena e deliciosamente carioca de Branca Vianna, o podcast revisita um dos casos mais célebres da criminologia brasileira: o assassinato de Ângela Diniz pelo namorado Doca Street, ocorrido em dezembro de 1976. A história é tão envolvente e o podcast tão bem produzido que eu fiquei viciado no negócio: ouvi os sete episódios um atrás do outro. Praia dos Ossos é uma novela, só que os personagens e acontecimentos são reais. Tem todos os ingredientes de uma boa peça ficcional: pessoas bonitas e famosas, uma praia, um crime passional, imprensa ensandecida, reviravoltas, duelo de advogados em júris memoráveis.

Mas o caso Ângela Diniz/Doca Street não foi uma ficção, e sim mais um odioso episódio de feminicídio neste país de feminicídios. Em resumo, foi o caso de um rapaz que matou a namorada com 4 tiros na cara porque ela se recusava a continuar o relacionamento. O que mais me impressionou naquelas páginas tristes da história foi a face horrenda do machismo. Após matar Ângela, Doca se tornou uma celebridade nacional, um adorável matador que lavou sua honra com sangue. O playboy era parado na rua pra dar autógrafos e as moças “de família” lhe enviavam cartas apaixonadas. De toda essa onda machista alucinógena, algo especial me chamou atenção: o drink Doca Street.

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Ouvi sobre essa monstruosidade no podcast e depois li a nota original, publicada no jornal O Diário do Paraná de 19 de janeiro de 1977. Surfando na docamania, a boate Click, de Cabo Frio, lançara um drink personalizado em alusão à figura do momento. Os ingredientes eram Campari, Cointreau e uísque, com um detalhe mórbido: a bebida era servida com quatro balinhas dentro do copo. Fico a me perguntar: que mentes doentias seriam capazes de criar e de beber um drink que deliberadamente homenageia o assassino confesso da namorada?

Por certo, mentes conservadoras, machistas, preconceituosas, racistas, hipócritas e cruéis. Mentes adoecidas que infelizmente não se extinguiram nos anos 70, pois eram filhas e netas daquelas dos anos 20 e 30 e que — como uma maldição — persistem a nos rodear até hoje. Esse machismo brasileiro contemporâneo fica patente ao lermos os comentários sobre a notícia de primeiro de agosto. Eis alguns: “De honra, o STF não entende nada mesmo”, “Gostei… se levar chifre de agora em diante, é só manda serrar”, “Boa decisão! Homens transformados em cornos passivos, obedientes e totalmente submissos e humilhados…”, “O termo plenitude de defesa tem que ser retirado da constituição”, “Nem a soberania do júri existe mais…”   

Transcrevi acima palavras de alguns advogados criminalistas, mas também as de pessoas comuns, inclusive de mulheres. É estarrecedor e repugnante. Confesso que parei de ler pelos acessos de engulho. Os nobres jurisconsultos que defendem a permanência da legítima defesa da honra se apoiam na tal “soberania do júri” e na “ampla defesa do réu”. Ou seja, ao advogado de defesa deveria ser preservada a prerrogativa ilimitada de convencer os jurados de que seu cliente só matou pra defender a honra ultrajada e porque estava sob violenta emoção. Inacreditável: o que advogam é o direito de matar.

Essa tese nefanda já havia sido retirada do Código Criminal do Império, em 1830. Não existia na lei, mas existia na sociedade, na cabeça dos jurados, na retórica dos advogados. E como os crimes contra a vida são decididos pelo júri (e não pelo juiz), muitos feminicidas confessos foram absolvidos. Agora, não mais: LDH é inconstitucional e jamais poderá ser pronunciada ou sequer insinuada num julgamento. É um marco pras mulheres do Brasil.

Foi simbólico que o voto final — aquele que fechou a goleada — tenha sido proferido por uma mulher chamada Rosa. Por isso, finalizo este texto com um pequeno buquê de três rosas vermelhas. A primeira ofereço pra Ângela Diniz. A segunda, pra Branca Vianna. A última vai pra ministra Weber que, elegantemente, personificou a força da rosa diante do machismo.

*Luciano Alberto de Castro, escritor

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