Ícone da MPB, Chico Buarque foi notícia recente graças a uma declaração sua numa série documental sobre Nara Leão (1942-1989), cantora para quem, sob encomenda, compôs nos anos 1960 a canção “Com Açúcar, Com Afeto”. No vídeo, o compositor declarou que não voltará a cantá-la (embora já não a cante em seus shows há décadas), reconhecendo a crítica feminista segundo a qual a letra seria “machista” por retratar uma figura feminina que hoje não teria mais lugar: a da esposa fiel e submissa a seu marido.
Na letra, uma dedicada esposa suburbana canta seu lamento em face do renitente desregramento do marido. “Com açúcar, com afeto” ela faz “seu doce predileto”, na esperança de que ele prefira o lar à boemia que o magnetiza na volta do trabalho. Já de madrugada, vencido sob os apelos da bebida, das companhias e da libertinagem dos bares, o marido volta para casa e chora o perdão da esposa contrariada, porém solícita e fiel. É então que, numa redentora ascensão harmônica que embala versos de indiscutível talento melódico e poético, a esposa mais uma vez releva a flacidez moral do marido e, misericordiosa, o perdoa e acolhe: “E ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratado, como vou me aborrecer? (…) Logo vou esquentar seu prato / dou um beijo em seu retrato / e abro os meus braços pra você.”
O próprio Chico Buarque admite que a música soava antiquada já no período em que foi composta (Nara Leão lhe pediu que fizesse uma “das antigas”, “de mulher sofredora”), posição confirmada na declaração posterior de que, em tempos de Anitta (funkeira por ele elogiada como símbolo de “empoderamento feminino”), a música em questão é, para dizer o mínimo, “datada”. Nascido nos anos 1940, sua geração acumulava na juventude suficientes efeitos anticristãos da era do rádio e do espírito artístico da música e do cinema norte-americanos, traduzidos numa flexibilização de costumes que, fervida na panela do ascendente protagonismo juvenil nos anos 1950-60, viria dar no embaçamento cultural através do qual se identifica no marido de “Com Açúcar, Com Afeto” não um projeto de decadência e encarceramento espiritual, mas o prefácio de uma “libertação”.
O gáudio com que parte da mídia feminista celebrou a suposta autocensura meritória de Chico (que ele nega) manifesta a mesma miopia. O feminismo e a revolução sexual são desordens catalisadas a partir do século passado por uma elite financeira global obcecada por controle populacional no pós-guerra. Joan Dunlop (influente ativista pró-aborto) foi quem ensinou ao magnata John Rockefeller III que, para assumir o controle da natalidade mundial, era preciso investir na subversão da imaginação da mulher quanto à nobreza da maternidade, da família e sua relação com a liberdade. Na prática, significava convencê-la de que os grilhões socioeconômicos da vida economicamente ativa sob vários homens afetivamente indiferentes a ela (patrões, banqueiros, credores e amantes) representavam mais liberdade que a dedicação familiar a apenas um (seu marido). Além dos homens, o apetite financeiro das grandes corporações desejava absorver também a “ociosamente doméstica” força de trabalho das mulheres, com o retorno duplamente conveniente da redução salarial geral e do maior controle político sobre as famílias e os indivíduos.
Santo Agostinho ensina que “o homem bom, ainda que seja escravo, é livre, enquanto o homem mau, ainda que reine, é escravo; e o que é pior: de tantos senhores quantos são os seus vícios” (“A Cidade de Deus”, séc. V). Santo Agostinho trata da liberdade, mas o faz com a sabedoria perene dos antigos: a verdadeira liberdade é autocontrole, é o domínio das paixões sob vontade e inteligência retamente ordenadas. Ser livre não é fazer tudo o que exigem os apetites, mas aplicar-lhes eficazmente a lei moral natural, reconhecendo na estrutura mesma da realidade os fundamentos das virtudes que, por oposição aos vícios, preservam-nos das fraquezas da carne e do espírito.
Portanto, se a virtude faz forte e livre o homem, a forma mais eficiente de enfraquecê-lo e dominá-lo é prover-lhe um ambiente de relaxamento moral que lhe excite a desordem das paixões, obscureça sua inteligência, corrompa sua vontade e acabe por seduzi-lo a uma vida viciosa e manipulável. A massificada satisfação imediata de seus baixos apetites é o tempero que, conferindo sensações efêmeras de liberdade à sua escravidão interior, torna-o inconsciente da manipulação cultural e política a que está frequentemente sujeito.
Em verdade, “Com Açúcar, Com Afeto” é sobre a esposa cuja dignidade resiste à indignidade do marido, é a ênfase das virtudes da mulher contra a tibieza moral do homem que a devia honrar dentro e fora de casa, mas para Chico Buarque não é bem isso. Numa declaração posterior à polêmica ele se defende dizendo preferir outra canção sua da mesma época. Em “Ela e Sua Janela” outra esposa vive o mesmo drama do marido festeiro e ausente, mas termina a canção mais “empoderada”: após receber na janela “um novo aceno” e “uma jura fingida” de “outro moreno”, a nova protagonista cogita “viver duma vez a vida” — leia-se, “libertar-se”, como seu marido, pela rendição à mesma tibieza moral. Para a espiritualmente debilitada perspectiva contemporânea, é o marido dissoluto quem goza de força e liberdade, não a esposa temperante, supostamente escrava em sua virtuosa submissão. Curiosamente, no entanto, após meio século de engenharia social com o apoio artístico de talentos como Chico Buarque, chegamos a índices nunca antes vistos de indiferença (e violência) contra a mulher ao som do empoderamento pornográfico de Anitta e similares. Santo Agostinho, Doutor da Igreja, tinha razão.
Segundo Tamiris Coutinho, autora de “Cai de Boca no Meu B#c3t@o: O Funk como Potência do Empoderamento Feminino” (pasmem, um trabalho acadêmico), Chico Buarque fez bem em se policiar porque “cantar ‘Com Açúcar, Com Afeto’ nos dias de hoje é romantizar a violência contra a mulher e ignorar a mudança de valores entre as décadas de 1960 e 2020”, conforme declarou a moça a um jornal eletrônico. O poder de “cancelamento” atual de pareceres “academicamente embasados”como esse apenas confirma o ensinamento histórico de que a Revolução, cedo ou tarde, sempre se volta contra seus soldados. Chico Buarque, símbolo de resistência política por canções como a blasfema “Cálice” (1973), começa a ser calado pelo estranho puritanismo de moçoilas confusas e assustadiças. Deseducadas na culinária, no amor e no perdão, já não têm açúcar nem afeto para lhe dar.
Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.
Só posso dizer que o tempo passou na janela, só Luciano Pires não viu (aliás pelos comentários, não só o articulista não viu…)
Só a religião pra ficar fazendo o escravo se sentir bem na condição de escravo e que o rico se sentirá mal só porque o chamamos de mal.
Se hoje o feminicidio é alto, é exatamente pelo sentimento de posse que alguns homens ainda tem sobre a mulher.
Alguém anotou a placa?rs
Claro, preciso e sem sacaroses ideológicas como a do “velho Chico”.
É bom saber que o Diário do Rio conta agora com articulistas politicamente incorretos, mas escorreitos, como Luciano Pires.
Parabéns!
Bom mesmo são as letras atuais das músicas de funk e forró que enaltencem a grandeza da mulher.