Luciano C. Pires – “Simpatia é Quase Amor”? – um ensaio anti-carnavalesco

Juntas desfilam a inversão litúrgica do Carnaval e a decadência espiritual carioca, com seus desdobramentos sociais, políticos e econômicos.

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Imagem ilustrativa (fonte: Canva)

A Ressurreição de Cristo (Páscoa) se deu num primeiro domingo de lua cheia da primavera no hemisfério norte (outono para nós, no hemisfério sul). Voltando-se 46 dias no calendário, cai-se exatamente numa quarta-feira (Cinzas). Descontando-se os seis domingos desse intervalo (não se jejua no Dia do Senhor), têm-se os exatos 40 dias da Quaresma (da quarta de Cinzas ao Sábado Santo, segundo o calendário litúrgico tradicional da Igreja). A “terça-feira gorda” (Carnaval) é então definida a partir da definição do Domingo de Páscoa, como o último dia em que os cristãos se entregavam ao consumo de carne (“Carne vale” = “Adeus à carne”) antes de iniciarem a preparação penitencial para a celebração da Páscoa — data mais importante do Cristianismo. O calendário carnavalesco, portanto, é tributário do calendário litúrgico.

Se o primeiro homem (Adão) foi tentado e vencido por Satanás, atraindo sobre si e sua descendência a corrupção e a morte, o “Novo Adão”, Verbo Divino encarnado (Jesus), começaria a restauração humana com seus quarenta dias de jejum no deserto, resistindo às tentações e derrotando o anjo rebelde com Seu divino poder. A Quaresma é o período em que, a exemplo de Nosso Senhor no deserto, os cristãos são chamados a travar com seriedade renovada o mesmo combate espiritual, intensificando suas batalhas habituais contra o mal nos adversários da salvação da alma — o demônio, a carne e o mundo — pelas armas que a Igreja o ajuda a empunhar — a oração, o jejum e a esmola. As cinzas da quarta-feira remontam aos tempos antigos, em que os penitentes passavam a Quaresma “in cinere et cilicio” (“em cinza e cilício”), publicamente cobertos de cinzas e metidos em andrajos pela expiação dos pecados, humildemente imersos na meditação sobre o pó que somos e a que voltaremos, na esperança de que menos indignamente pudessem participar dos méritos da Ressureição de Cristo e, assim, alcançar a felicidade eterna do Céu.

Nota-se, portanto, que a conhecida máxima carnavalesca “pra tudo se acabar na quarta-feira [de cinzas]”, um lamento pelo que seria o fim de dias apoteóticos, exprime uma inversão litúrgica subliminar: numa devoção às avessas, seria o frêmito sensual do Carnaval — e não a Páscoa — o propósito da preparação de um ano inteiro, após o que o folião voltaria a um cotidiano supostamente mecânico, enfadonho, frustrante e sem sentido. A extravagante licenciosidade sob a fantasia temporária de uma outra identidade, ao som de ritmos que apelam mais aos sentidos que ao espírito, seria o máximo escape de uma existência que só se crê realizada e redimida pela saturação dos prazeres do corpo. Dada a finitude da carne e o prazer sempre limitado que dela se pode gozar, porém, as ilusões festivas e efêmeras da folia não podem ser a culminância da vida humana, cuja distinção essencial está no que nela há de imaterial (alma racional), de modo que apostar nas alegrias corpóreas como felicidade suprema inevitavelmente conduz ao tédio, à insatisfação e, no limite, à desesperança.

O tradicional bloco carnavalesco carioca “Simpatia é Quase Amor” (estreante em 1985) foi assim nomeado por inspiração de um personagem das crônicas de Aldir Blanc (1946-2020). Na coletânea “Rua dos Artistas e Transversais”, o célebre compositor e cronista, criado em Vila Isabel, apresenta seu primo Esmeraldo, “conhecido pelas domésticas da Penha como Simpatia-é-quase-Amor”, assim apelidado pela fama de conquistador. A mesma expressão, entretanto, encerrava no século anterior o poema “O que é — Simpatia”, de Casimiro de Abreu (1839-1860), expoente do Romantismo brasileiro:

“Simpatia – meu anjinho,
É o canto do passarinho,
É o doce aroma da flor,
São nuvens dum céu d’Agosto,
É o que me inspira teu rosto…
– Simpatia – é – quase amor!”

A verdadeira obra de arte vale-se do belo para inclinar o homem à transcendência do Absoluto. Para tanto, deve satisfazer-lhe a inteligência (Verdade), a vontade (Bem) e a sensibilidade (Beleza). Isso era claro para os medievais, mas se a Renascença (séc. XV), pela imoralidade, separou da arte o Bem, o Romantismo (séc. XIX), por seu idealismo sentimentalista, dispensaria também a Verdade, restando à obra apenas agradar à sensibilidade. Não surpreende, portanto, que a alma artística romântica, arredia ao Bem e à Verdade sob os excessos da emoção, decaísse até a crueza grosseira e pessimista do Naturalismo, para, enfim, estilhaçar-se no Modernismo (séc. XX) — em que nem mais a Beleza importa. Sendo a alma humana talhada para conhecer a verdade, amá-la como bem clarificado e deleitar-se em sua beleza intrínseca, o homem romântico, subjugado por uma sensibilidade indomável, adentra a antessala do desespero. É assim que a inocente imprecisão comparativa entre simpatia e amor no verso de Casimiro de Abreu evoluirá para o saboreio da canalhice libertina em Aldir Blanc e a progressiva decadência arquitetônica da Cidade Maravilhosa — testemunhada pelo próprio Aldir em suas crônicas.

Se a sacralidade artística medieval selou a integridade da obra de arte (em Deus identificam-se a Verdade, o Bem e a Beleza em máximo grau), da imoralidade renascentista ao niilismo modernista, passando pelo descolamento romântico da realidade, traça-se o itinerário revolucionário que degrada a beleza em feiúra (sobretudo moral). O romântico beira o desespero porque, em sua tormenta sentimental, julga amar demais quando, ao contrário, já não sabe amar. Incapaz daquele ato nobre da vontade na escolha efetiva do bem (amor), resta-lhe estressar o substitutivo menor da mera afinidade de sentimentos (simpatia).

Debilitado na “virtude unitiva” de que fala Santo Tomás de Aquino (1225-1274) — que no indissolúvel matrimônio católico encontra sublime expressão, imagem que é da união final da alma com Cristo na glória celeste —, o romântico será, a despeito de sua aparente agitação interior em contrário, um paralítico no amor, enredado por ciclos e mais ciclos de simpáticas idealizações, seguidamente frustradas e refeitas. Eis aí o ascendente espiritual de Esmeraldo “Simpatia-é-quase-Amor”, cujo caráter dissoluto e zombeteiro refletia já um tempo de atrevida indiferença para com as coisas da religião que a tudo iluminara com a luz civilizacional da Eternidade e do Sumo Amor. Com excitação e encantamento, a juventude de Aldir Blanc e de seu primo acompanhava a passagem da vida da graça à vida do gracejo — e com ela a gradual dissolução das famílias, das relações humanas e da paz urbana (não fosse o Diabo puro espírito e tivesse dentes, estaria sorrindo).

Lantejoulas, plumas e purpurinas compõem a beleza postiça com que se busca revestir uma alegria puramente carnal, forçosa e extenuante porque vazia de bem e de verdade — um vácuo frequentemente preenchido por excessos entorpecentes, sexuais e demais vícios que deles se seguem. Não se trata aqui, porém, de uma campanha aborrecida e pesarosa contra o expediente geral do festejo e da brincadeira — o mesmo Santo Tomás de Aquino ensina que “o lúdico está para a alma como o descanso está para o corpo” —, mas da triste constatação de um tombo espiritual (e moral) da altitude de um Corcovado ou de um Morro de Santa Teresa.

Do Cristo Redentor ao cimento ateu da Praça da “Apoteose” (“glorificação” à moda Oscar Niemeyer), do Convento das Carmelitas ao libertino calçamento da Lapa, só não nos esborrachamos mais porque nos amortecem a queda a Eucaristia e o fervor religioso do claustro. Do santuário montanhoso (embora flagelado pelo relativismo modernista) e do silêncio contemplativo das freiras de Santa Teresa (embora parodiadas por outra incompreensão carnavalesca) sobem anjos com os santos apelos reparadores que ainda nos sustentam contra o abismo metafísico em que se precipita o Rio de Janeiro a cada folia blasfema. O refugo romântico e anti-Pascal do nosso Carnaval faria chorar São Francisco de Assis (1182-1226), que do fundo d’alma vertia lágrimas ao dar-se conta de que “o Amor não é amado” — referindo-se ao desprezo generalizado dirigido a Nosso Senhor e Sua Igreja.

Atribui-se a D. Fulton Sheen (1895-1979), arcebispo católico norte-americano, a afirmação de que “a desordem econômica é um sintoma de desordem espiritual”. Corrupção, fraude, roubo, violência, injustiça social etc. são desordens vinculadas à econômica que, pela mesma filiação à desordem espiritual, têm suas raízes no pecado, sendo este “um abuso da liberdade que Deus dá às pessoas criadas para que possam amá-lO e amar-se mutuamente” (Catecismo da Igreja Católica, n. 387). Mas se no Carnaval carioca simpatia e amor se confundem, Aquele cuja ressureição na Páscoa nos resgatou da morte espiritual, por outro lado, vale-se de bem pouca simpatia ao ensinar o amor sem o qual jamais teremos a paz que Ele próprio nos quer dar (mais até do que nós mesmos a desejamos):

Eu sou a videira; vós, os ramos. Quem permanecer em mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer.
Se alguém não permanecer em mim será lançado fora, como o ramo. Ele secará e hão de ajuntá-lo e lançá-lo ao fogo, e queimar-se-á (…)
Se guardardes os meus mandamentos, sereis constantes no meu amor, como também eu guardei os mandamentos de meu Pai e persisto no seu amor.

(Jo 15, 5-10)

A todos os prezados leitores do Diário do Rio e à nossa querida cidade, meus sinceros votos de uma Santa Quaresma.

Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.

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