A dedicatória escrita com tinta vermelha se apagou com o tempo. Não achei de todo ruim; aquelas letras vermelhas sobre o papel azul e branco, ainda que escritas pelo Monarco, me incomodavam. Lembro-me da aflição com que procurei uma caneta azul ou preta para que ele autografasse o pôster que eu acabara de comprar. A única que consegui foi uma vermelha, quase rosa (na certa, algum espírito mangueirense quis me espicaçar). Isso foi em 2019, quando estive na quadra da Portela. A figura da águia, autografada pelo bamba, foi emoldurada e colocada na parede para que constasse que aquela era a casa de um portelense. Ontem, refleti entristecido que, assim como as palavras que ele escrevera no meu pôster, Monarco havia desvanecido.
Eu não saberia dizer ao certo por que virei portelense. Não sou carioca, nem tenho ascendentes no Rio. Sou um reles mineiro morador do planalto central; não sou sambista e nem uso camisa de listra. De onde teria vindo esse amor pela Portela? Pensei que pudesse ser pelo azul e branco, iguais aos do meu Cruzeiro. Suspeitei também que pudesse ser por Candeia, Paulinho da Viola, Marisa Monte. Pode ser. As cores e os artistas podem ter contribuído, mas não foram o essencial. Talvez a explicação não esteja neste mundo. É verdade: concebo que a minha afinidade com o Rio, e por extensão com o samba e a Portela, é espiritual, e acho que Monarco tem muito a ver com isso.
Há alguns anos eu estava pesquisando sobre a história do samba e acabei achando uma entrevista do Monarco no youtube. Eu pouco o conhecia; obviamente já ouvira falar do sambista veterano, tido como patrimônio do samba carioca; por isso assistira à longa entrevista até o final. O curioso foi que o que mais me marcou naquela conversa (mais até do que o profundo conhecimento de Monarco sobre o samba) foi a sua serenidade e doçura. Eu fiquei encantado com a pureza daquele senhor negro, de fala mansa, de gestos suaves e sorriso sincero. Aí está a conexão espiritual a que me referi. Foi uma afinidade tão espontânea e automática que eu tive a impressão de que éramos amigos há séculos. A partir desse dia, me tornei portelense convicto.
O meu amigo Felipe Lucena, pó de arroz e cronista fino, disse que separa as pessoas em duas categorias: aquelas com quem ele beberia e aquelas com quem ele nunca se sentaria numa mesa de bar, nem se elas lhe pagassem a conta. Pois bem, Monarco estaria entre aquelas com as quais eu beberia um dia inteiro, folgando, petiscando e jogando conversa fora. Aliás, acredito que já fizemos isso em muitas rodas de samba lá pelas bandas de Madureira e Oswaldo Cruz (mas isso aconteceu no século passado). Mais recentemente, estive, na qualidade de fã, próximo ao Monarco em duas ocasiões: uma na feijoada da Portela, onde ele me deu o autógrafo com a caneta vermelha, e outra num show em Goiânia. Nas duas, a mesma impressão de serenidade, complacência e verdade.
No dia 11 de dezembro de 2021, um sábado de samba e feijoada, Monarco partiu deixando o samba em desalinho. Choram seus filhos, seus amigos, seus fãs. Uma enorme paixão os devora, uma alegria partiu, foi embora. Mas outra permanece: a lembrança imortal da pessoa e da obra de Monarco. Por isso, neste domingo, Oswaldo Cruz chorou, mas também cantou e dançou no “gurufim” oferecido ao seu filho ilustre, que é assim, com alegria, que o Brasil se despede de seus bambas. Vai em paz, mestre. Nos vemos por aí!
*Luciano Alberto de Castro, professor e escritor