Antonico é uma forma amigável de se referir a Antônio, um nome do qual gosto muito, tanto por simpatia como por genealogia. Antônio Gonçalves Dias e Antônio Carlos Jobim são poetas da minha devoção. Antônio Guida era o meu trisavô italiano, nascido nas costas da Calábria. Talvez algum deles tenha sido chamado de Antonico, não sei. De todo modo, reforçando a afinidade, o epíteto nomeia uma música que adoro: o samba Antonico, de Ismael Silva, o menino de Jurujuba.
Podemos saborear esse hino brasílico na voz de Alcides Gerardi (a primeira gravação), Elza Soares, Benito Di Paula, Martinho da Vila, Jards Macalé e do próprio Ismael. O sax de Gato Barbieri apresentou Antonico aos yankees e há relatos de que a canção tenha sido gravada na França, Alemanha e Itália. De todas que ouvi, a que mais me encantou foi a gravação da Gal, em 1977. É sublime como Maria da Graça toca seu violãozinho e declama apaixonadamente a canção, enquanto uma cuíca dolente — talvez filha do Estácio — ponteia notas de saudade.
O teor da letra, que pede uma cadência mais lenta, faz de Antonico uma peça única no repertório de Ismael Silva. Se antes predominavam os sambas capadócios, que louvavam a orgia pra remediar desilusões, surge um canto lamentoso, sofrido, em tom mais grave e donde parece transudar alguma mágoa. Essa feição diferente e triste reflete o período nebuloso por que passou o compositor em meados dos anos 30. Tempos difíceis, que começaram com uma altercação num botequim, depois tentativa de assassinato, prisão em flagrante, inquérito, julgamento e condenação.
Vou ativar aqui o modo jornalista investigativo para lhes contar essa história de xadrez na vida do nosso sacerdote do samba. E o farei com riquezas de detalhes. Vários jornais do Rio noticiaram o fato ocorrido no dia 31 de março de 1934, um sábado, por volta das 19 horas. Segundo o Diário de Notícias, o café Ponto Chic, localizado na esquina da Laura de Araújo com Salvador de Sá teria sido o cenário do confronto entre Eduardo Espazafumo, 29 anos, branco, empregado no comércio, e Ismael Silva, 28 anos, preto, gravador de discos. Vejam que a gazeta especificou as cores, frisando que o gravador preto tentara matar o comerciário branco com 5 tiros de revólver. Nenhum disparo acertou Espazafumo (ou Spazzafumo) que fugiu correndo em ziguezague.
Há controvérsias sobre a motivação do crime. O JB fala em “caso íntimo”. O Diário de Notícias reporta que Eduardo e Ismael eram ex-sócios numa gafieira da Haddock Lobo, tornaram-se inimigos por questões financeiras e que Ismael quisera deliberadamente eliminar o desafeto naquela noite. A biografia de Maria Thereza Soares ameniza e diz que Ismael teria se zangado por conta de uma graçola dita por Eduardo a sua irmã Orestina. Seria motivo pra tanto? Vai saber. O fato é que o sambista foi a júri popular e pegou pena de 4 anos de xilindró. Consta que saiu antes disso.
Quando deixou o presídio, foi morar com uns parentes no Catumbi e não era mais o mesmo: calado, introspectivo, envergonhado, ferido na sua gabolice. Não é difícil imaginar os perrengues que ele enfrentou nessa fase sendo homem preto, pobre, ex-presidiário e sem uma profissão formal. O que sabia fazer muito bem era samba, mas a cadeia o relegara a um doloroso ostracismo musical. É aí que aparece a mão amiga de Pixinguinha. Numa carta datilografada, com data de 19 de maio de 1939, Pixinga pede emprego pro amigo. Ressalta que o antigo parceiro de Francisco Alves “têm luctado com difficuldade” e ao final roga que “o que puder fazer pelo Ismael seja como se fosse para mim”. Que rara demonstração de amizade!
Ismael sempre negou que o seu samba mais famoso fosse autobiográfico (eu também negaria), mas é impossível não achar uma conexão óbvia entre a letra e o momento em que foi escrita, explicitado na carta do mestre Alfredo Vianna. Antonico é um bilhete musicado que fala de um tal Nestor, exímio sambista, vítima de muamba (feitiço) porque “no samba ninguém faz o que ele faz” — leia-se a mágoa e a vaidade do autor. Da carta, existem citações quase literais, como “vivendo em grande dificuldade” e “faça por ele como se fosse por mim”. Eu não tenho dúvida: Nestor é Ismael Silva, em carne e osso, mágoa, gabolice e genialidade.
Finalizo recordando-me de antigas tertúlias etílico-musicais, quando algum membro mais afeito ao samba me pedia: Luciano, meu chapa, toque o Antonico pra nós. E eu, sem delongas, puxava o pinho, desenhava um lá menor e entoava solenemente: “ô Antonico, vou lhe pedir um favor…” Acabou-se. Não canto há quase 4 anos. Meu violão também se calou. Empoeirado na parede, teve o fim melancólico dos instrumentos esquecidos. Foi bom rabiscar essas linhas. Quem sabe São Ismael do Estácio não me inspira a recomeçar.