Luiz Antonio Simas: ‘O Rio de Janeiro é meu único personagem’

Autor está lançando o livro “Maldito invento dum baronete: uma breve história do jogo do bicho" e falou com a reportagem do DIÁRIO DO RIO sobre esse novo trabalho, além de questões referentes ao Rio de Janeiro, como as contradições históricas, a cultura e o Carnaval

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Foto: Felipe Lucena

Só para molhar a palavra“, disse o professor, historiador e escritor Luiz Antonio Simas após pedir um chope antes de começar a entrevista concedida ao DIÁRIO DO RIO no Alfabar , na Rua do Mercado, centro da cidade. De fato, Simas tem muito a dizer e precisa hidratar as falas que comentam inúmeros temas, mas tudo girando em torno do Rio de Janeiro.

No mesmo Alfabar, no último sábado (22/06), ele lançou o livro “Maldito invento dum baronete: uma breve história do jogo do bicho“. A obra já está disponível em livrarias e na Internet.

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Nesta entrevista ao DIÁRIO, Simas comentou esse novo trabalho e questões referentes ao Rio de Janeiro, como as contradições históricas, a cultura e o Carnaval. De acordo com o autor, é impossível contar a história do Rio de Janeiro sem falar sobre o jogo do bicho: “É um livro sobre as encruzilhadas entre o jogo e a cidade: samba, botequim, futebol, macumba, crime, carnaval, a metafísica dos sonhos, o palpite dos defuntos e o culto aos mortos, as ruas. Duas armadilhas que devem ser evitadas por quem estuda o jogo do bicho: a primeira é a simples romantização de uma atividade que estendeu tentáculos para um amplo complexo de atividades criminosas. A outra é a simples criminalização e aversão ao jogo e seus praticantes. É importante reconhecer que o jogo está entranhado na formação da cidade do Rio de Janeiro e assentado no campo simbólico em que práticas culturais inscritas nas histórias das ruas cariocas se estabelecem. Simplesmente não se conta a história da cidade sem o jogo do bicho”.

DIÁRIO DO RIO: Jogo do Bicho é um tema que você sempre falou. Por que esse livro agora, depois de tanto tempo?

Simas: Porque de certa maneira, eu acho que o Jogo do Bicho é um elemento importante que atravessa as culturas de rua do Rio de Janeiro. Ele vai atravessando ao longo da República, o futebol, as religiosidades afro-cariocas, e as suburbanidades do Rio. A cultura de botequim. Tudo isso é marcado pelo Jogo do Bicho. Pro bem e pro mal. Então, de certa forma, o Jogo do Bicho é um sintoma da cidade. E eu gosto de pensar essa ideia: um sintoma do Rio de Janeiro. Estudando o jogo, eu acabo estudando a cidade. Porque você pode gostar do Jogo, pode detestar, pode achar que ele é uma maldição, pode achar que ele é uma benção, mas uma coisa é certa: ignorar o Jogo do Bicho para contar a história republicana do Rio de Janeiro é impossível. Eu acho que o livro vem muito dessa ideia de continuar um trabalho meu, de coisas que falo, pesquiso, escrevo há anos. Basicamente, só tenho um personagem nos meus livros que é o Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro é meu único personagem.

DIÁRIO DO RIO: O Jogo do Bicho está em alta, digamos assim, por conta de duas séries documentais sobre o tema. Lei da Selva e Vale o Escrito. Inclusive, vocês dá depoimento nas duas. Por que essa evidência recente também no audiovisual?

Simas: Eu gosto muito dessas duas séries. Elas trazem um recorte muito específico do Jogo do Bicho, que é a criminalidade do Rio de Janeiro contemporâneo. E eu acho que isso é só um fragmento, porque a gente está falando de um jogo que tem mais de 130 anos. É um jogo que é de 1893. Acredito que esse sucesso vem muito de uma certa atração paradoxal que é a criminalidade urbana como tema. Tem muitas outras séries, documentários, filmes do tipo. São tramas, são enredos de fato emocionantes, peculiares, impactantes. Acho que tem essa ânsia. Por outro lado, eu vejo com uma certa ressalva qualquer produção que fale sobre o Jogo do Bicho. Existem dois riscos muito grandes ao olhar o Jogo do Bicho. Um é a romantização que desconsidera os tentáculos que em certo momento da história, o Jogo lança para uma série de atividades criminosas. Essa romantização do Jogo, como se o Jogo não tivesse em certo momento vinculado ao crime no Rio de Janeiro, é um problema. O outro problema é o inverso. É você restringir o Jogo do Bicho a história do crime no Rio de Janeiro contemporâneo, perdendo uma complexidade enorme que o Jogo tem, e a maneira como ele está entranhado na construção da cidade. Situar o Jogo entre uma romantização ingênua e uma criminalização é simplório, porque não dá conta da complexidade do Jogo do Bicho. O Jogo do Bicho é complexo. A cidade é complexa. Voltando a falar das séries, que gosto muito mesmo, acho que ficaram populares por esse fascínio com a violência e por essas histórias humanas em meio a tudo. Em Vale do Escrito, por exemplo, personagens ficaram conhecidos para o grande público em um enredo que às vezes parece de novela. Quando, na verdade, estão falando de uma vida real, estão falando de violência urbana. Acho que passa por aí. Passa por essa questão.

DIÁRIO DO RIO: Você sempre fala que o Jogo do Bicho foi historicamente perseguido, criminalizado por ser uma loteria de pobre. Nesses últimos dias foi noticiado uma CCJ no Senado que visa legalizar os chamados jogos de azar no Brasil. Em paralelo a isso, existe a nova geração de bicheiros que têm um, digamos, estilo de vida diferente dos antigos barões do Jogo. Você acha que esses fatos podem mudar essa visão que se tem em relação ao Jogo do Bicho?

Simas: Essa CCJ no Senado está muito mais ligada aos bingos, apostas online. O Jogo do Bicho entrou nessa, mas ele é o jogo que está conectado à cultura urbana. Inclusive, acho que ele corre o risco de acabar. Por quê? Primeiro é básico, o Jogo do bicho não renova o público apostador. Te dou um exemplo: para escrever esse livro, eu cansei de frequentar botequins que ficam perto de bancas de Bicho para ficar vendo quem joga. Ninguém que não seja pelo menos de meia idade joga no Bicho. Então, você não vai ver um garoto jogando, se interessando por isso. Eu pergunto para jovens se sabem jogar no Bicho. Ninguém sabe. E você tem o avanço dessas bets né? As apostas online. E isso do Jogo do Bicho correr o risco de acabar, você cria um problema enorme. A história do Jogo do Bicho, por incrível que pareça, é a história do mercado de trabalho informal no Rio de Janeiro. Você tem os trabalhadores do Jogo. O jogo do bicho não é só o Rogério Andrade que está ali. E que hoje tem pouca coisa a ver com o Jogo. Para esses caras, o Jogo do Bicho não é nada do ponto de vista de onde vêm a grana deles. Mas você tem o cara que é o apontador que está na esquina escrevendo Bicho. E de certa maneira, desde a década de 1970, o Jogo do Bicho está em crise. Sobre qualquer aspecto que você imagine, inclusive o aspecto da rentabilidade. A rentabilidade do Jogo caiu. Então desde 1970, 1975, os banqueiros do Jogo do Bicho perceberam que a circulação de capital inserida no Jogo propriamente dito era insuficiente. Aí, você começa a ter uma diversificação de investimentos, de alocação de dinheiro que é muito forte inclusive em uma série de atividades criminosas.

DIÁRIO DO RIO: E por qual motivo se iniciou esse enfraquecimento do Jogo nos anos 1970?

Simas: Um dos motivos foi a Loteria Esportiva. Quando a gente estuda a história do Jogo do Bicho, conversa com gente do Jogo do Bicho, todo mundo diz que a Loteria Esportiva impactou pesadamente a renda do Jogo. A Loteria Esportiva criada em 1970, naquele clima de Seleção Brasileira de Futebol tricampeã do mundo. Ela foi criada disputando o imaginário popular com o Jogo do Bicho, porque é o futebol, são treze jogos. Um número que está cheio de simbolismos. O impacto da rentabilidade do Bicho com a criação da Loteria Esportiva é enorme. E você tem uma ampliação de ofertas de loteria do estado. Foi o próprio governo do Médici que criou a Loteria Esportiva junto com a Caixa Econômica Federal. Um pouco mais para frente, nas décadas seguintes, vieram as máquinas de caça-níquel. E o caça-níquel passou a render mais do que o Jogo do Bicho. Tanto que os bicheiros entraram no ramo de dividir território para ter as maquininhas. E passaram a brigar por isso. O Jogo do Bicho não se sustenta como um empreendimento capitalista. E na prática é isso mesmo. Um empreendimento capitalista, de gerar circulação. O Jogo do Bicho continua sendo um jogo de pobre. Quem joga é aquele cara que aposta cinco reais. Cercando o bicho. É aquela senhorinha que sonhou com o falecido marido e pega o número do local onde o falecido está enterrado no cemitério e joga. Aquele camarada que compra um carrinho novo e joga a placa do carro. É jogo de arraia miúda.

DIÁRIO DO RIO: Fora do Rio de Janeiro também tem Jogo do Bicho. O livro fala disso?

Simas: O livro prioriza o Rio. Ainda que ele fale da questão da Paraíba quando fala do futebol. É um estado em que o Jogo do Bicho tem uma tradição muito forte. Mas ele foi se configurando de acordo com as especificidades de cada lugar. Nesse ponto, o Jogo parece o Samba. Você tem o Samba urbano do Rio de Janeiro. O Samba de roda baiano. Tem uma história que eu conto, que na Paraíba, durante a criação do clube de futebol Treze de Campina Grande, não sabiam que nome dariam para o time. Como tinham treze pessoas na sala, ficou treze. E o mascote passou a ser o galo porque no Jogo do Bicho, treze é galo. Em Minas tem o Atlético, que também tem o galo como mascote e o rival Cruzeiro por um tempo não usava o número treze por isso. Nem o treze e nem o dez, porque dez é coelho e quando o América de Minas tinha mais rivalidade tinha essa coisa de não ter número dez no elenco mesmo. O Jogo do Bicho virou um jogo nacional.

DIÁRIO DO RIO: Um assunto leva ao outro. Sobre Carnaval. O Que que você achou dessas mudanças prometidas pela nova direção da Liesa? Desfiles das escolas em três dias, entre outras.

Simas: Eu não sei como isso pode impactar as escolas de samba. Eu tenho um receio que eu não sei se vai se concretizar, porque não aconteceu ainda. Meu receio é as escolas perderem o protagonismo. Num espetáculo que deveria ser prioritariamente delas. Eu vejo com receio como isso vai impactar os desfiles da Intendente Magalhães, também. Que não adianta você não lembrar e considerar isso. As escolas de samba que desfilam na Intendente Magalhães são importantes. Eu só espero que a própria Liesa tenha o discernimento de perceber que, se der errado, tem que voltar atrás. Eu confesso para você que a priori e eu não gosto. A priori, eu acho muito complicado, inclusive para critérios julgamento. Você julgar uma escola que vai desfilar cinquenta horas depois de outra. Eu não consigo conceder julgamento que não seja comparativo. Acabou de fechar o envelope num dia. E aí a outra. Como é que você compara? Eu não sei como julgar sem comparar. Mas é aquele negócio, quando os desfiles passaram a ser em dois dias, teve gente também que ficou horrorizada, achando que o Carnaval ia morrer e tal. E deu certo. Mas é importante o alerta, é importante a gente falar para evitar problemas. Meu medo é que isso esteja ligado ao que a gente chama de ‘camarotização’ do Carnaval.

DIÁRIO DO RIO: Você fala muito das contradições da cidade do Rio. É possível imaginar o Rio de Janeiro sem elas?

Simas: Não tem como analisar o Rio de Janeiro sem as contradições que estão dadas na cidade. O Rio de Janeiro é uma cidade instigante, é uma cidade complexa, é uma cidade que sempre foi muito tensionada. Eu sou partidário da ideia de que a gente tem que complexizar a análise sobre a cidade mesmo, porque tem duas coisas que me incomodam. Uma delas é aquele mito da cidade maravilhosa. De que tudo é uma verdadeira maravilha. E a outra é o oposto, de acharem que a cidade é inviável, porque é uma cidade tomada pelo crime, pela esculhambação. O Rio é uma grande cidade, uma metrópole urbana que foi capital do Brasil, capital da colônia, foi sede de uma corte portuguesa que se transferiu para cá. Ao mesmo tempo é a cidade com o maior porto de entrada de gente escravizada na história da escravidão moderna. Então, essas complexidades todas vão delineando de certa maneira a história do Rio de Janeiro no que ela tem de sublime, no que ela tem de beleza e no que tem de crueldade. A gente tem que encarar isso. Eu costumo dizer que o Rio de Janeiro é aquela cidade em que um pau pode ser o pau que bate no corpo alguém para tirar sangue, mas também pode ser uma baqueta que bate no couro do tambor para inventar o mundo. É preciso encarar essa cidade de frente, essa complexidade.

Foram uns cinco chopes ao todo. Cinco para cada, no caso. Eram muitas palavras para molhar.

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