Mais de 60% dos desaparecidos no Rio de Janeiro têm mais de 18 anos de idade

Pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) mostra que a realidade é diferente do que é pensando normalmente: que são adolescentes ou crianças que lideram essa estatística

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Foto: ONG Mães Virtuosas

O estudo “Teia de ausências: o percurso institucional dos familiares de pessoas desaparecidas no Estado do Rio de Janeiro”, divulgado nesta quinta-feira (26/05), é baseado na nova pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) e mapeia a vivência de familiares de desaparecidos durante a investigação enquanto esperam obter respostas, apoios e soluções. Para a legislação brasileira, até que se prove o contrário, um desaparecimento não constitui crime. O que acaba fazendo com que não seja prioridade nas investigações da Polícia Civil. Quem mais sofre são familiares negros e pobres. Nos últimos 13 anos, 60,5% dos desaparecidos no Estado do Rio de Janeiro tinham 18 anos ou mais.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2019, o Estado do Rio de Janeiro ocupava o sexto lugar em números absolutos de registros de casos de pessoas desaparecidas. E mesmo com mais de 16 milhões de habitantes, possui apenas uma delegacia especializada, a Delegacia de Descoberta de Paradeiros (DDPA), localizada na Zona Norte da cidade. A unidade especializada abrange apenas o município do Rio, deixando de investigar mais de 55% das ocorrências do Estado. Mesmo que, juntas, a Baixada Fluminense e as cidades de São Gonçalo e Niterói, tenham registrado nos últimos dez anos 38% dos desaparecimentos do Estado e 46% dos da Região Metropolitana. Em uma década, o Brasil registrou um milhão de casos de pessoas desaparecidas, sendo 50 mil apenas no Rio de Janeiro.

“É preciso pensar na ampliação do serviço especializado da polícia. Só temos uma delegacia especializada no Rio de Janeiro que fica localizada na capital e atende a demanda desse território. Além de poupar os familiares de serem vítimas de negligência nas delegacias não especializadas – um relato muito comum – também é importante para evitar que essas pessoas, precisem passar pela situação de registrar o desaparecimento dentro de uma delegacia de homicídios, como é feito no Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense, Niterói e São Gonçalo. Um setor dentro da delegacia de homicídios não tem a força de uma delegacia, e não tem a quantidade de serviços que uma delegacia especializada tem para trabalhar com o tema. Além dos profissionais serem capacitados para realizar esse tipo de atendimento, a delegacia especializada dá conta de conduzir o caso desde o início por variados caminhos.
Na DDPA da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, quando há suspeita de homicídio, faz-se uma busca no Núcleo de Cadáveres, que levanta diariamente, junto aos institutos médico-legais do estado, a presença de corpos não identificados e os compara aos registros feitos na DDPA, por meio de impressões digitais, arcadas dentárias, sobreposição de imagens e, em casos mais raros, busca direta por DNA. Quando não há indício de homicídio, aciona-se a rede de abrigos e serviços de saúde, assistência e segurança (prisões e delegacias) por intermédio do Núcleo de Comunicação. Esse trabalho em rede é de grande importância, em função da já mencionada variedade de perfis e dinâmicas dos desaparecimentos. Tudo isso de acordo com o perfil da pessoa desaparecida. O serviço especializado é essencial. Precisamos também falar sobre o quantitativo de profissionais. A polícia é carente de concursos públicos e conta com um número muito baixo de profissionais, tudo isso impacta diretamente no serviço oferecido”
, informa Paula Napolião, pesquisadora do CESeC; mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ.

A análise da pesquisadora é compartilhada por quem mais sofre com a situação: as mães. “A lei da busca imediata não é cumprida até hoje, talvez por falta de interesse da polícia que existe ainda, que encara o desaparecimento de jovens e adolescentes com maus olhos, tem um prejulgamento, achando que estão em boca de fumo. Isso acontece porque eles não vivem essa dor, então fica a palavra empatia mais na prática não vemos resultados”, relatou Luciene Pimenta, presidente da ONG Mães Virtuosas.

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Luciene Pimenta, presidente da ONG Mães Virtuosas.

Apenas nos últimos três anos, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), contabilizou 32 projetos de lei, aprovados ou não, sobre o tema dos desaparecidos. Em junho de 2021, a ALERJ realizou a primeira audiência da CPI de crianças desaparecidas. Durante seis meses foram ouvidos representantes da Fundação para Infância e Adolescência (FIA), da Defensoria Pública do Estado e do Ministério Público, além dos relatos de mães que denunciaram a negligência do poder público.

“A CPI representou uma vitória de familiares de pessoas desaparecidas porque possibilitou que o tema fosse pauta no âmbito legislativo. Ao mesmo tempo, expôs a lacuna em termos de acesso e integração de políticas públicas para esse campo. É fundamental a participação das mães e familiares de pessoas desaparecidas nesses espaços de construção de política pública, só assim teremos a aproximação com as verdadeiras demandas e a elaboração de ações amplas e eficazes”, afirma a pesquisadora Giulia Castro, mestranda em Serviço Social e Desenvolvimento Regional pela UFF, que esteve presente na CPI.

De acordo com os dados coletados, dos estereótipos mais alimentados por agentes de segurança é o “perfil padrão”, ou seja, adolescentes que fogem de casa e aparecem alguns dias depois. Como mostra a pesquisa, muitas mães relatam ouvir dos policiais, na tentativa de um registro de ocorrência, que “se é menina, foi atrás de namorado; se é menino, está na boca de fumo”. Embora os dados mostrem outra realidade.

“O que podemos perceber durante o desenvolvimento da pesquisa é que o tema do desaparecimento é sempre atual; os números, apesar de gritantes, são pouco discutidos. Conversando com os coletivos de mães, também identificamos essa problemática. Elas se sentem abandonadas, num caminho solitário. O trabalho de alguns órgãos e deputados, por vezes, mobiliza iniciativas legais, mas elas acabam não saindo do papel, como a maioria das iniciativas sobre a temática. Isso demonstra a necessidade de políticas de estado e não políticas de governo, uma vez que as políticas de governo não têm continuidade com a mudança do mandato. A política nacional de busca de pessoas desaparecidas teve esse impulso. Em 2021, acompanhamos uma das reuniões para a construção dessa política, que na teoria é robusta, mas as ações precisam de fato sair do papel. Para termos boas iniciativas em âmbito nacional, é preciso boas ações em âmbito estadual que dialoguem entre si, como por exemplo a padronização do registro de ocorrência para casos de desaparecimento. Hoje não há um padrão nesse documento, as informações são registradas de maneira diferente em cada estado e até em cada delegacia dentro do mesmo estado, o que dificulta a criação de um banco de dados nacional, por exemplo”, detalha Giulia Castro.

Ainda segundo o levantamento, deslegitimar os casos culpabiliza as vítimas, ao invés de um crime a ser investigado pelo Estado, torna-os um problema da família e da assistência social. Uma vez que alegações como “se não tem corpo, não tem crime”, se naturalizam no cotidiano.

O fenômeno do desaparecimento é complexo e tem muitas camadas. Apesar disso, os dados sobre o tema são insuficientes sobretudo porque não há um banco unificado capaz de precisar a dimensão da questão. A ausência de dados implica diretamente na qualidade e efetividade de políticas públicas, que muitas vezes existem mas são insuficientes e não abrangem famílias pobres e majoritariamente negras”, destaca a pesquisadora Paula Napolião.

Muitos são os motivos para uma pessoa desaparecer, como pontua a pesquisadora: “O desaparecimento é um fenômeno multicausal que engloba desde crimes como homicídio com ocultação de cadáver, rapto, sequestro e tráfico humano, casos de pessoas mortas enterradas como indigentes, até idosos com Alzheimer, portadores de doenças mentais, crianças que se perdem, adultos que saem de casa e não retornam e ainda adolescentes que fogem por conflitos domésticos. No estado do Rio, a pesquisa qualitativa mais recente que explora as motivações dos desaparecimentos – em todas as faixas etárias – é do Instituto de Segurança Pública de 2007 e enumera os seguintes motivos como principais: fuga, distúrbios mentais, causas violentas, motivações de lazer, abandono de lar, dentre outros“.

Diante de tal situação, organizações da sociedade civil se mobilizam para tentar encontrar soluções: “A ONG existe desde 2019. Usamos as redes sociais, temos páginas no Facebook, Twitter, Instagram. Contamos com o apoio tbm das nossas mãezinha Virtuosas que voluntariamente ajudam nas divulgações. Temos nossos movimentos todo mês nas escadarias da Câmara dos Vereadores, na Cinelândia. Toda segunda e quinta feira de cada mês. Temos um cadastro das mães atendidas, já que o objetivo é ajudar as famílias de pessoas desaparecidas. Temos atendimento psicológico online, uma médica que atende tbm online, assistente social, todos voluntários. Na próxima semana teremos um espaço ( sala) no centro da cidade. Vamos inaugurar com uma roda de conversa. Será no primeiro sábado de cada mês. Para sobreviver, temos um bazar onde ganhamos doações. Todo tipo de doações, onde o dinheiro arrecadado é para fazer camisetas, faixas, banners, ajuda de passagens, lanches etc. Vejo a necessidade de cada família para receber cesta básica, remédios e o que conseguimos através de doações”, disse Luciene Pimenta, da ONG Mães Virtuosas.

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