Em maio de 2017, pouco antes de subir ao palco para moderar um painel no Fórum de Internet de Estocolmo, na Suécia, percebi um desequilíbrio flagrante dos participantes, que se preparavam para uma ladainha contra o jornalismo e os meios de comunicação. Na plateia, havia encontrado uma antiga conhecida de congressos e reuniões internacionais de editores que fazia brilhar qualquer evento com sua capacidade de exposição e, mais do que isso, com sua defesa apaixonada do jornalismo diante de pressões vindas de todos os matizes ideológicos.
Advoguei então com a direção do fórum que a agora Prêmio Nobel da Paz Maria Ressa, desconhecida e incógnita naquele ambiente hostil, fosse incluída de última hora no painel, com o fim de estabelecer um mínimo de equilíbrio nos previsíveis ataques de quem acreditava que as redes sociais poderiam substituir veículos de comunicação como fontes confiáveis de informações. Maria encarou a animosidade da plateia e narrou seus percalços nas redes que culminavam sua trajetória, de repórter da CNN na Ásia a publisher do site Rappler, crítica ao presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte.
Mais uma vez, a pequena Maria mostrou-se uma gigante. Como fizera dois meses antes em Paris, em uma cúpula da Unesco da qual participamos para discutir o impacto da erosão do jornalismo na estabilidade mundial, ela descreveu como as redes haviam se tornado armas para catapultar a candidatura do extremista Duterte à presidência e como ela passara a ser atacada sem tréguas por sua voz crítica. Depois, em uma reunião que coordenei com chefes de redação de quatro continentes no jornal Le Figaro para tratarmos do novo papel das plataformas tecnológicas, Maria de novo foi decisiva na missão de abrir os olhos para o fato de que havia algo de podre no que até então parecia ser o reino maravilhoso das big techs.
Aos poucos, a ficha do mundo começava a cair para o apocalipse informativo que representa a deterioração do jornalismo e das democracias causada pela drenagem de recursos pelas plataformas, combinada com a hostilidade constante à imprensa incentivada por governantes das Filipinas, da Rússia, da Polônia, da Venezuela, da Nicarágua e, entre outros, infelizmente, também do Brasil.
Foi nas conversas com Maria em diferentes latitudes, da Suécia à África do Sul, que acordei para a realidade de que não se tratava de coincidência que muitos países eram almas gêmeas no jogo de poder digital que busca desacreditar o jornalismo profissional para impor a desinformação que conduz autocratas ao poder. Uma vez eleito Duterte, Maria e seu site não seguiram apenas como vítimas de um permanente e sufocante assédio virtual. Nas Filipinas, o presidente usou sua caneta e a de aliados para uma perseguição regulatória e tributária contra Maria, que chegou a ser presa.
No próximo 11 de dezembro, menos de cinco anos após aqueles encontros em Paris e Estocolmo, Maria – se for autorizada a sair das Filipinas – ingressará com o outro vencedor do Nobel da Paz, Dmitry Muratov, no imponente salão da prefeitura de Oslo para receber oficialmente o prêmio e discursar para uma plateia mundial, seguramente com o mesmo brilho de sempre. Ao jornal do qual Dmitry é editor-chefe, a Novaya Gazeta, tive a honra de entregar, em 2016, na Colômbia, um dos principais prêmios de liberdade de imprensa do planeta, o Golden Pen of Freedom, concedido pelo Fórum Mundial de Editores, do qual era presidente. Maria recebeu o mesmo prêmio em 2019.
Maria e Dmitry são os primeiros vencedores do Nobel por exercerem plenamente o jornalismo, uma atividade tão machucada por crescentes dificuldades econômicas, intimidações e tentativas de descrédito em tantos lugares da Terra. Embora com trajetórias em países tão distintos, os dois vencedores são seres de uma mesma espécie. São jornalistas puro-sangue de veículos de comunicação que sofrem ataques orientados por populistas e radicais que se valem das redes para tentar desmanchar a barreira de contenção do jornalismo à realidade paralela inflada por eles. Assim como Maria o fez no painel de Estocolmo, o Nobel ao jornalismo ajuda a restabelecer o equilíbrio ao tornar claro que a liberdade de imprensa e o exercício da atividade sem intimidações não são exigências dos jornalistas. São pré-condições para que as sociedades vivam em democracias e com paz duradoura.
No fundo um tributo à verdade, poucas vezes um Nobel da Paz pareceu tão justo, apropriado e necessário para a estabilidade e a sanidade mundiais.
Concordo que a imprensa deve ser livre e sem censuras. Mas discordo que a imprensa atual seja relevante, pois está se colocando a serviço de uma agenda ideológica e, muitas vezes, se distancia da verdade que deveria defender com unhas e dentes. Por isso, estão perdendo credibilidade. Voltem a noticiar a verdade doa a quem doer que o povo reconhecerá o papel de vocês.
Ora, direis…
“Nas Filipinas, o presidente usou sua caneta e a de aliados para uma perseguição regulatória e tributária contra Maria, que chegou a ser presa.”
No Brasil, quem usou (e usa) a caneta para perseguição regulatória não foi o presidente da República, mas outros presidentes que tenho medo de nomear para não ser preso.
E aí, vai escrever outro panfleto divulgando o que se passa no Brasil, defendendo os jornalistas intimidados e presos, pois, afinal, “liberdade de imprensa e o exercício da atividade sem intimidações não são exigências dos jornalistas.” ?!
Sei (sabemos) que não.