O Cais do Valongo, localizado no centro do Rio de Janeiro, foi um dos principais portos de chegada dos negros escravizados enviados ao Brasil. O local foi redescoberto em 2011, durante as obras para revitalização da zona portuária e em 2017 foi nomeado Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco.
É nesta região da cidade que acontece a trama do livro ”O Crime do Cais do Valongo”, lançado em 2018 pela editora Malê. A história tem início quando o comerciante Bernardo Lourenço Vianna é encontrado morto numa rua do Rio de Janeiro com uma faca enfiada na barriga e partes do corpo mutiladas. A investigação do crime é feita pelo Intendente-Geral Paulo Fernandes, primo do morto. Nuno Moutinho, ”um letrado aspirante a livreiro”, resolve se intrometer na investigação, temendo que descubram que ele tinha motivos para matar Bernardo. Para isso, aproxima-se do Intendente. Porém, os suspeitos imediatos são os três negros escravizados pertencentes a Bernardo Vianna: Muana, Roza e Marianno.
A história é contada por dois personagens: Nuno e Muana. Nuno relata o andamento das investigações, enquanto Muana discorre sobre sua trajetória, desde quando morava em Moçambique com sua família, até o momento em que foi trazida como escrava para o Rio de Janeiro. É um relato repleto de dor e saudade, que mostra como pessoas livres foram destituídas de sua cultura, de seu passado e de sua humanidade.
Muana fala sobre o seu estranhamento diante das diferenças entre a cultura de seu povo e a que vê no Brasil. Por exemplo, o fato de o homem ser o elemento principal de uma família. Para a personagem isso não faz sentido, já que em sua aldeia ”a mãe é o centro da família. Todo mundo vê o filho saindo de dentro dela. Os reis e as dinastias descendem dela, da mãe”. Os capítulos, que se alternam entre os relatos de Muana e Nuno, são entremeados por recortes de jornal daquele período, com notícias sobre a venda de negros ou a busca pelos que fugiam, além de outras informações sobre o que acontecia no mundo. A história tem também um toque de realismo fantástico, o que a torna ainda mais interessante.
É um romance policial, mas o ponto forte é mesmo a narrativa de Muana sobre a perversidade do comércio de pessoas, pois podemos conhecer os horrores da escravidão pelo ponto de vista da própria escravizada. Fica evidente o extenso trabalho de pesquisa da autora Eliana Alves Cruz, que traz detalhes sobre as condições desumanas em que os negros escravizados eram trazidos para o Brasil – os que chegavam, porque muitos morriam pelo caminho. Ainda que se trate de um livro de ficção, sabemos que é uma história terrivelmente real.