Escrito em meados dos anos 80, o romance Becos da Memória, de Conceição Evaristo, só seria publicado vinte anos depois, em 2006. Foi nesta narrativa que a autora utilizou pela primeira vez a “escrevivência”, termo cunhado por Conceição para descrever a sua ficção, que une escrita e vivência, utilizando-se da invenção para preencher as lacunas que aparecem entre o que aconteceu e a narração do fato. Uma ficcionalização da memória, onde verdade e mentira (invenção) se confundem.
Em Becos da Memória entramos em contato com as histórias de diferentes personagens habitantes de uma favela. Não bastassem as dificuldades do dia a dia, como o desamparo, a miséria, a fome e o preconceito, os moradores precisam lidar também com a ameaça do desfavelamento promovido pelo governo. Os moradores mais antigos sofrem com a ideia de deixar aquele lugar com o qual já estão acostumados para viver em um local desconhecido.
“Tio Totó andava inconsolável: já velho, mudar de novo, num momento em que seu corpo pedia terra. Ele não sairia da favela. Ali seria sua última morada. Ele olhava o mundo com olhar de despedida.”
A narradora de Becos da Memória é Maria-Nova, que, quando criança, morava na favela. Sempre muito atenta, gostava de ouvir as histórias de vida contadas por pessoas da sua família e por seus vizinhos. Sensível à dor dos mais velhos, Maria-Nova sentia-se impotente diante dos tratores que iniciavam o processo de desfavelamento, destruindo as moradias e levando para longe aqueles que ela conhecera a vida inteira. A menina, então, decide que um dia irá escrever as histórias de seu povo, para que elas não desapareçam junto com a favela e para dar algum sentido àquelas vivências tão doloridas.
“(…) o que doía mesmo em Maria-Nova era ver que tudo se repetia, um pouco diferente, mas, no fundo, a miséria era a mesma. O seu povo, os oprimidos, os miseráveis; em todas as histórias, quase nunca eram os vencedores, e sim, quase sempre, os vencidos.”
A autora Conceição Evaristo foi moradora da favela do Pindura Saia, em Belo Horizonte, sua cidade natal. Através de sua “escrevivência”, ela desconstrói os estereótipos atribuídos aos negros e moradores de favelas, ampliando suas vozes e mostrando-os em sua subjetividade, suas forças e fraquezas. A linguagem em Becos da Memória tem a marca da oralidade das histórias que Maria-Nova ouvia enquanto criança. Uma oralidade que imprime poesia mesmo às existências mais sofridas.
Maria-Nova conta a “história viva”, porque atual e real, ao contrário daquela contada nos livros do colégio. Mostra que a relação casa-grande–senzala sobrevive no contraste entre a favela e o bairro nobre, localizado logo ao lado. Quem leu Carolina Maria de Jesus poderá se lembrar do seu Quarto de Despejo ao ler, por exemplo, sobre as filas para buscar água nas torneiras da favela ou sobre os políticos que apareciam por lá apenas em período de eleições.
As histórias são narradas por Maria-Nova “como uma homenagem póstuma” aos personagens que fizeram parte daquele momento de sua vida. São vidas cheias de dores, mas com alguns momentos de respiro, como os proporcionados pelas inesquecíveis festas juninas e campeonatos de futebol que aconteciam na favela. Momentos em que a alegria amenizava o desespero, fornecendo um pouco de paz para que as pessoas pudessem resistir e seguir em frente. Para que viver não perdesse o sentido.
A terceira edição de Becos da Memória foi publicada em 2017 pela Pallas Editora.
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- Livro: Becos da Memória
- Autora: Conceição Evaristo
- Editora: Pallas
- Páginas: 200