Márcia Silveira – Cartas para minha avó: racismo, feminismo e ancestralidade nas memórias de Djamila Ribeiro

Com estas cartas, Djamila deseja, a partir de suas memórias, relatar para a avó o que ela não teve tempo de ver e saber: que hoje a neta é uma escritora e filósofa reconhecida no mundo inteiro e que as experiências que teve desde a infância formaram a base para que ela hoje seja reconhecida por seus livros e sua filosofia

Advertisement
Receba notícias no WhatsApp

Djamila Ribeiro vivia o início da adolescência quando sua avó materna, Antônia, faleceu, aos 68 anos. Quando estava com 20 anos, Djamila perdeu sua mãe e, apenas um ano mais tarde, seu pai. Em Cartas para minha avó, a autora dialoga com a avó materna a fim de fazer um retrospecto de sua própria vida e refletir sobre como os acontecimentos do passado contribuíram para que ela se tornasse a pessoa que é hoje.

Partindo de sua infância, quando morava em Santos, litoral de São Paulo, e passava as férias na casa de Dona Antônia, em Piracicaba, Djamila relembra o afeto que recebia na casa da avó, mulher amorosa, benzedeira muito requisitada, que a enchia de mimos e a defendia das broncas da mãe, a exigente Dona Erani.

“Lembro também, vó, de seu colo quente e amoroso, das suas mãos rápidas que benziam meu corpo enquanto sussurrava rezas quase incompreensíveis. As mesmas mãos que benziam eram as que preparavam comidas fartas e apetitosas no domingo. Que saudade de suas mãos lindas, mãos com história, com calos, mas macias ao acarinhar e trançar meus cabelos.”

A autora lamenta não ter tido a oportunidade de questionar a avó a respeito de seus sonhos, medos, suas vivências como mulher negra, mãe de sete filhos, que trabalhava em casas de família para sustentar a própria. Ao escrever suas memórias no formato destas cartas, Djamila conversa com Dona Antônia sobre lembranças e experiências marcantes de sua vida, como os episódios de racismo e assédio que sofreu na adolescência, e a morte dos pais, quando as pessoas em volta exigiam força de uma menina ainda tão jovem.

Advertisement

“Essa imagem da mulher negra forte é muito cruel. As pessoas se esquecem de que não somos naturalmente fortes. Precisamos ser porque o Estado é omisso e violento. Restituir a humanidade também é assumir fragilidades e dores próprias da condição humana. Somos subalternizadas ou somos deusas. E pergunto: quando seremos humanas?”

Segundo Djamila, sua mãe era rigorosa e autoritária na criação dos quatro filhos – dois meninos e duas meninas – por querer prepará-los para um mundo que, ela sabia, poderia ser cruel. Dona Erani entendia que deveria, principalmente, proteger as duas filhas “das violências que somente mulheres sofrem”. No entanto, em meio à rigidez, havia muito espaço para o afeto e para a cumplicidade entre mãe e filha – cumplicidade que deixou como lição para Djamila a importância da união entre as mulheres. Djamila compreendeu que grande parte da raiva que a mãe sentia era consequência de sua vivência em uma sociedade machista, que a obrigava a sempre ceder, deixando suas vontades e ambições de lado para ser a esposa e mãe que esperavam que ela fosse.

“Passamos a vida culpando as mulheres que nos criam, assim como muitas vezes culpei minha mãe, sem olhar para quem nos tira o chão, a casa, as oportunidades. Acabamos sempre onerando outras mulheres pela falta de escolhas que nos é imposta. São sempre elas que precisam abrir mão do pouco que têm para alimentar toda a aldeia.”

Mulheres negras irão se reconhecer em algumas situações ocorridas na infância e na adolescência de Djamila. Já nascemos sendo consideradas “o outro” – o outro do homem, o outro da mulher branca. E buscar um lugar de pertencimento quando tudo indica que não nos encaixamos em lugar algum, é uma luta árdua. Mas Djamila conseguiu encontrar seu lugar – um lugar que amplia a voz de todas nós que nos identificamos de alguma forma com esse não pertencimento.

Com estas cartas, Djamila deseja, a partir de suas memórias, relatar para a avó o que ela não teve tempo de ver e saber: que hoje a neta é uma escritora e filósofa reconhecida no mundo inteiro e que as experiências que teve desde a infância formaram a base para que ela hoje seja reconhecida por seus livros e sua filosofia, que trata das questões de raça e gênero. E que ela honra o afeto da avó quando, no convívio com a filha, Thulane, rompe os tabus existentes nas relações anteriores entre as mulheres da família. Dona Antônia deve estar se sentindo orgulhosa.

Livro: Cartas para minha avó

Autora: Djamila Ribeiro

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 200

Advertisement
Receba notícias no WhatsApp
entrar grupo whatsapp Márcia Silveira - Cartas para minha avó: racismo, feminismo e ancestralidade nas memórias de Djamila Ribeiro
Advertisement

Comente

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui