Márcia Silveira – Cidadã de Segunda Classe: uma vida guiada pelo sonho

Colunista do DIÁRIO DO RIO, Márcia Silveira fala sobre o livro ''Cidadã de Segunda Classe''

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Capa do livro ''Cidadã de Segunda Classe'' - Foto: Reprodução

“Tudo começara como um sonho” – é assim que tem início o livro Cidadã de Segunda Classe, romance autobiográfico escrito pela autora nigeriana Buchi Emecheta (ed. Dublinense, tradução de Heloisa Jahn). E é esse sonho que irá nortear a vida da protagonista Adah desde a infância até a idade adulta. Um sonho que ela sentia como uma “Presença” a guiar seus atos.

Embora não tivesse sido registrada pelos pais, Adah sabia que havia nascido em Lagos, na época da Segunda Guerra Mundial. E foi por volta dos oito anos (quando “sentia-se com oito anos”) que ela passou a se sentir guiada pelo sonho. Tudo começou quando viu a mãe e as outras mulheres da sociedade se preparando para recepcionar o primeiro advogado da cidade de Ibuza, cidade onde os familiares de Adah haviam nascido. O advogado retornava do Reino Unido, onde havia passado alguns anos estudando:

“[Adah] fez uma promessa secreta para si mesma: um dia iria ao Reino Unido. Sua chegada ao Reino Unido seria o pináculo de suas ambições.
Apesar de pertencer ao povo igbo, que dava muito valor aos estudos, Adah demorou a ser matriculada na escola, pois a preferência era pela educação dos meninos – no caso, seu irmão Boy:

“(…) embora Adah já estivesse com uns oito anos, a família ainda discutia se seria adequado mandá-la para a escola. E mesmo que ela fosse mandada para a escola, seria mesmo adequado deixá-la frequentar a escola por muito tempo? ‘Um ano ou dois, e o assunto está resolvido, ela só precisa aprender a escrever o nome e a contar. Depois, vai aprender costura’. Adah ouvira a mãe dizer isso às amigas muitas e muitas vezes.”

Porém, seguindo o sonho, certo dia a menina fugiu de casa para ir à escola, provocando uma enorme confusão (que envolveu policiais acusando a mãe de Adah de abandono de menor) – mas, no fim, a artimanha deu certo e ela foi finalmente matriculada na Escola Metodista.

Adah precisou enfrentar diversos obstáculos que tinham muito potencial para desviá-la de seu caminho. Vários deles, ligados à cultura opressora de seu povo, pois, “entre os igbos, uma menina era pouco mais que um bem material”. Quando o pai morreu, ela foi mandada para a casa do tio para trabalhar como empregada doméstica. Lá, convivia com a violência e o desprezo, e precisou amadurecer cedo para se cuidar sozinha.

Conquistou com muito custo o direito de continuar os estudos após a morte do pai e casou-se ainda adolescente, logo que terminou o colégio, porque era a forma de sair da casa do tio – e Adah era considerada uma noiva de valor por ter estudado. Após o nascimento do primeiro filho, conseguiu um bom emprego no qual ganhava mais que o marido, Francis.

Quando finalmente consegue ir para Londres com a família (marido e dois filhos), Adah sofre com a xenofobia e o racismo, além da opressão e violência de Francis, que, ali, longe dos pais, coloca para fora toda a sua frustração por não ser o provedor (em Londres, ele se dedica apenas aos estudos e é o salário dela que sustenta a família). Na Nigéria, Adah conseguira algum status por conta dos estudos e do bom salário, e não foi fácil perceber que ali, na Inglaterra, seu esforço não tinha valor. É Francis, o marido opressor, quem, num de seus muitos momentos de fúria, despeja sobre ela a dura realidade:

“‘Você deve saber, querida jovem lady, que em Lagos você pode (…) estar ganhando um milhão de libras por dia; pode ter centenas de empregadas; pode estar vivendo como uma pessoa da elite, mas no dia em que chega à Inglaterra vira cidadã de segunda classe’.”

A leitura de Cidadã de Segunda Classe é, por vezes, amarga, por sabermos que se trata de um romance autobiográfico. Embora a opressão de raça e gênero seja uma realidade conhecida por muitas de nós, é sempre dolorido ler um relato, ainda que romanceado, de situações tão desumanas – em muitos momentos, a narrativa me remeteu à leitura de Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Situações que se tornam ainda mais violentas quando são culturais – o que “era o costume”, como aparece em determinado momento do livro.

Como podemos ler na orelha do livro, a autora Buchi Emecheta, assim como Adah – ou Adah, assim como Buchi –, atravessou uma infância difícil e, mais tarde, um casamento infeliz, mas conseguiu seguir firme em seu caminho para criar os cinco filhos e se tornar escritora.

Adah, tal qual sua criadora, também deseja ser escritora e alcançar a prosperidade que todos em Lagos imaginavam ser o destino de quem partia para o Reino Unido, mas, em vez disso, vê-se envolvida numa luta árdua pela sobrevivência. Ali, longe da terra natal, ela é desprezada até pelo próprio povo e descobre que precisará enfrentar tantos desafios quanto na Nigéria para conseguir se manter fiel ao propósito. O que todos – em Lagos ou em Londres – esperam de Adah é a submissão. Mas seu maior valor – e sua maior força – reside, justamente, na desobediência.

  • Livro: Cidadã de Segunda Classe
  • Autora: Buchi Emecheta
  • Tradutora: Heloisa Jahn
  • Editora: Dublinense
  • Páginas: 256

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