Como fazer para seguir em frente após sofrer uma violência sexual? O livro Vista Chinesa, de Tatiana Salem Levy, traz a história da personagem Júlia, que um dia sai de casa para correr no caminho que leva à Vista Chinesa, ponto turístico do Rio de Janeiro. O que seria mais um dia normal se transforma no pior dia da sua vida. Ela é abordada por um bandido, levada para o meio da floresta que fica às margens da estrada e brutalmente estuprada. A narrativa é inspirada no que aconteceu em 2014 com uma das melhores amigas de Tatiana, a diretora de TV Joana Jabace.
O livro é uma carta que Júlia escreve para seus filhos pequenos. Antonia e Martim nasceram anos depois do estupro, frutos do seu casamento com o personagem Michel. Porém, Júlia tem a sensação de que, de alguma forma, eles já sabem o que aconteceu, por terem vindo daquele mesmo corpo que fora antes violado: “Pensando melhor, não é bem uma carta. É mais um testemunho. Um testemunho, não. Um testamento. O testamento que eu não quero deixar para vocês.”
A personagem relata o momento do estupro e os dias que se seguiram, com a polícia em sua casa e as tentativas infrutíferas de produzir um retrato-falado de alguém que ela não tem certeza se lembra das feições. Não há como ler Vista Chinesa sem se angustiar não só com os detalhes do estupro, mas também com a insistência da polícia para que a personagem reconheça o homem que a violentou. Júlia, sob pressão, alterna entre a certeza e a dúvida, com medo de enviar alguém inocente para a cadeia. Fica evidente o despreparo da polícia para lidar com alguém fragilizado por uma violência.
“Incrédulo, ele me olhou e perguntou, precisa de ajuda? Eu me calei por um instante, então aquele policial achava mesmo que podia me ajudar colocando cinco culpados na minha frente? A lucidez e a loucura se alternando, a calma e o nervosismo, a sensatez e a ansiedade, quando, por receio, acabei escolhendo dois.”
É evidente também a oposição entre o que se esperava na época da cidade do Rio de Janeiro, que se preparava para a Copa do Mundo e as Olimpíadas, e o horror ocorrido próximo a um de seus pontos turísticos – horror que parecia antecipar a decadência da própria cidade: “Nada apontava para um desastre, nem na cidade, capa de todos os jornais e revistas, nem na minha vida.”
A autora criou uma narrativa fragmentada, que vai e volta no tempo, como a memória, que aos poucos remonta os episódios. Resultado de entrevistas que Tatiana fez com sua amiga, a obra é um relato forte e doloroso, que provoca incômodo, revolta e traz à tona a fragilidade da justiça e da própria vida.
Vista Chinesa foi publicado em 2021 pela editora Todavia.