Mau humor carioca: Nascido para ser selvagem – mas só delivery

Gustavo de Almeira continua com seu mau humor e agora apontado para os motociclistas, a falta de respeito, o aumento do número de mortes e até de assaltos

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Motoboys rodam na Praça XV, no centro histórico do Rio de Janeiro | Foto: Rafa Pereira - Diário do Rio

Quem tem mais de 40 anos certamente viu – alguns, claro, em sessões retrô – Peter Fonda (irmão da Jane e pai da Bridget) e Dennis Hopper pilotando duas motos Harley-Davidson no filme Sem Destino (Easy Rider, no original em inglês), ao som de diversos clássicos, dentre eles Born to be wild (Nascido para ser selvagem), da banda americana Steppenwolf. Falo em “mais de 40” porque considero a última geração a ter sido diretamente influenciada pelos anos 60 – e um teste disso é o cara associar o nome da banda – Lobo da Estepe – ao livro homônimo de Herman Hesse, outro hit daqueles tempos que não voltam mais (o século 21 parece estar firme na convicção de não permitir isso). Nesse clássico, dirigido pelo próprio Dennis Hopper, o sonho americano é não ter raízes, é ser “easy rider”.

Pois bem: talvez este filme seja culpado pela queda imensa na qualidade de vida no Rio de Janeiro hoje, quando associa, erradamente, o uso de motocicletas a auto-enganos como “Liberdade”, “Ousadia”, “Desprendimento” e outras coisas que cabem muito bem numa highway americana ou numa autobahn alemã, mas que simplesmente não têm como florescer na aridez de um engarrafamento na Mena Barreto (e eu desafio o leitor a encontrar uma foto na Mena Barreto sem engarrafamento, creio ser algo tão raro quanto um jogo da Suíça com mais de dois gols). Não nasce nem erva daninha num engarrafamento na Mena Barreto e é capaz de nascer urtiga no fim da tarde lá pela Avenida 24 de Maio.

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Só que Peter Fonda e Dennis Hopper ficariam bem intimidados se vissem o desempenho dos motociclistas no Rio de Janeiro, que simplesmente parecem ter aprendido uma coisa básica: regras de trânsito não precisam ser seguidas por motocicletas. E ninguém os avisa disso. Cortam pela direita, usam a buzina irritante de moto como se fosse sirene de ambulância (sim, eles entendem que é OBRIGATÓRIO deixar eles passarem, não interessa se você está ao lado de um 422 – ou Quatro Doidão, como se fala no Cosme Velho – fumegando), te xingam, olham feio se é mulher ao volante, desafiam motoristas de ônibus para briga (já vi três vezes), se estranham com taxistas, tudo para entregar a lasanha de alguém em tempo hábil a fim de depois levar um hamburger. O trânsito? Só um detalhe. Outra cena frequente que merecia trilha sonora de Born to be wild é quando eles simplesmente sobem em calçadas, invadem pontos de ônibus com crianças e idosos porque afinal de contas são motos, são “livres” e não podem jamais em tempo algum ficar engarrafados como os outros veículos.

E soluções a curto prazo? Não há. O problema foi criado em curtíssimo prazo: durante a pandemia restaurantes fecharam, empregos foram extintos, e isso empurrou milhares de trabalhadores para a informalidade do Ai Comida (sim, vocês sabem qual a marca). Mas como sempre acontece com serviços via aplicativos, não há controle de input. Explico isso no próximo parágrafo, tentando não ser chato.

Quando se estudam as Políticas Públicas, é necessário entender a Teoria Geral dos Sistemas desenvolvida pelo cientista político canadense David Easton, uma ferramenta excelente para análise. Resumindo muito a coisa, temos aí o Input (demandas de bens e serviços), o Gatekeeper (o sistema do governo), a Black Box (a instância de tomada de decisões), o Feedback (a retroalimentação do sistema) e o Output (o resultado de tudo ou seja, o “DEU RUIM”). Isso que eu fiz é um resumo bem resumo mesmo da coisa.

Pois bem: quando se tem uma economia que a) Não investe na educação básica; b) Não investe na boa formação de ensino médio; c) Não gera empregos, o que se tem é a precarização do trabalho via apps: Uber, Ai Comida, Uber Moto. Com o pós-pandemia, o que já era ruim ficou péssimo: a qualidade de emprego e salário foi para as famosas cucuias (não confundir com a Cacuia, na idílica Ilha do Governador).

A alternativa é um “emprego” onde é necessário apenas ter uma moto. Aprender a dirigir, aprender regras de trânsito? Isso seria um desejo normal se vivêssemos numa sociedade onde todos se relacionassem de forma bilateral com o Estado (pagando impostos e recebendo serviços), mas nos locais em que moram a maioria dos entregadores do Ai Comida, acreditem, não se pagam impostos e tampouco se recebem serviços. Eles simplesmente aprendem a acelerar e a buzinar. Com exceções, claro. Mas aqui precisamos ser generalistas.

Assim, aconteceu o Input: a necessidade de mais empregos e por outro lado a maior demanda por comida entregue na porta de casa (ou na portaria, ok, Rica Perrone?) causaram um crescimento absurdo em um mercado sem nenhum controle. Centenas, milhares de novos motociclistas foram inseridos nas ruas do Rio. O “gatekeeper” deixou tudo passar? Sim, nenhuma instância governamental se meteu, embora todas pudessem (municipal, regulações de trânsito, estadual, segurança, federal, políticas públicas de primeiro emprego).

A “black box” não achou por bem decidir nada, a não ser… liberar o Uber Moto! Assim, mais umas milhares de motos foram despejadas no pós-pandemia na cidade. E o sistema começou a se retroalimentar, já que o que não falta é gente com fome e preguiça e, por outro lado, insatisfeitos com ônibus que topam pagar sete reais para ir do Humaitá ao Catumbi, mesmo usando um capacete que pode ter sido usado por alguém com piolhos.

Adivinhem qual o Output: sim, o nome dele é caos. Milhares de motos por todas as partes, infernizando o trânsito, ameaçando pessoas e… sendo ameaçados. Sim, segundo o DataSus, são 33 mortes POR DIA em todo o Brasil resultando de acidentes com motos. Em Belo Horizonte, esse mesmo número (33) já foi o número de atendimentos DIÁRIO pelo Samu a acidentes com motocicletas. Em São Paulo, as mortes em moto subiram 24 por cento em janeiro deste ano, em relação ao mesmo período do ano passado.

E analisemos com dados do SUS o período de auge da pandemia: entre março de 2020 e julho de 2021 o sistema registrou 308 mil internações de pessoas em decorrência de acidentes de trânsito no Brasil. Os acidentes de moto representaram 54%, ou seja, mais da metade!  Segundo essa mesma pesquisa, feita pela Universidade Federal de Minas Gerais, as vítimas são homens, negros, jovens (20 a 49 anos) e com perfil socioeconômico baixo. Quando não morrem, ficam meses sem poder trabalhar. Ganha um McLanche Feliz quem me apontar um entregador que esteja sendo assistido por um aplicativo enquanto está todo quebrado.

Ainda há outros dois efeitos colaterais da Motociclização da nossa sociedade: por toda a cidade os entregadores espontaneamente se reúnem e dominam localidades – e ali mesmo fazem suas necessidades, deixando um legado de urina. Mas por quê? Ora, o aplicativo é “só para mediar” a relação, não tem obrigação de fornecer estrutura, pagar banheiros, dar um wifi, uma sala de espera, nada. É o Liberalismo Caracu, o dono do app só entra com a cara. Assim é também com o Uber Moto.

O outro efeito colateral é aquele mais antigo, que só se agrava: o assalto cometido por motociclistas. Não se passa um dia sequer sem vermos nas redes sociais vídeos de assaltos cometidos por motociclistas. A Polícia tenta enxugar gelo prevenir, com abordagens, blitzes, mas é muito difícil – até porque muitos dos assaltantes que aparecem nos vídeos estão com o porta-objetos na parte traseira, característica dos entregadores. O Ai Comida se interessa por um QR Code, que pudesse identificar rapidamente o sujeito cadastrado (até mesmo pelo vídeo, quem sabe) ou isso é uma “despesa que não tá prevista”?

Assim, o que temos no pós-pandemia, como Input?

  1. Trânsito dificultado pelo excesso de motos pilotadas por pessoas que não têm noção de regras
  2. Aumento dos assaltos com motos, disfarçadas pelo aumento de motos de entrega
  3. Precarização do trabalho (sim, não precisa ser de esquerda para identificar isso)
  4. Locais tomados por entregadores que na verdade são desempregados trabalhando para um robô dentro de um celular
  5. Praças inteiras transformadas em estacionamento de motos
  6. Motocicletas usando buzinas como se fossem sirenes, entendendo que é obrigação todo mundo sair da frente
  7. Sabe a bicicleta Itaú? Agora é bicicleta do Ai Comida, pois muitos entregadores simplesmente ocupam o espaço para aguardar os pedidos.

Os “ideais” de Dennis Hopper e Peter Fonda? Só a parte de “Born to be wild” parece estar sendo seguida à risca, que o digam os outros motoristas (carros e ônibus) no Rio de Janeiro.

O Gatekeeper, portanto, está em uma sinuca de bico: não pode impedir jovens sem emprego de tentarem a vida com as entregas (seria um avanço impedir os jovens sem emprego de tentarem a vida com os assaltos, mas isso é pedir demais), mas se em um médio prazo não interromper o aumento do número de motos, isso aqui vira distopia, não utopia. Ou seja: não um Easy Rider, mas um Mad Max engarrafado. A decisão de permitir o Uber de moto foi, nesse contexto, algo completamente insano, algo como dar um cigarro aceso para um doente de enfisema.

Talvez até os fabricantes de motocicletas precisem pensar nisso: os valores associados ao produto, que antes eram “liberdade” e “fluidez” estão se transformando rapidamente. No quê, ainda não consegui identificar. Mas é “selvagem”, com certeza. O Lobo da Estepe, perto disso, é um Lulu da Pomerânia.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Eu sigo as regras de trânsito e fod@-se! A lataria já tá toda cacarecada de tanto esbarrão de motos e nem ligo. Mas se cair, também não ligo, apenas sigo meu caminho.
    Em vila Isabel, dizem que um taxista jogou o carro em cima do motociclista, mas é puro sensacionalismo! O “motoca” quebrou o retrovisor do táxi e abriu fuga, quando ele viu que não iria fugir do taxista, ele quis se arrepender, mas já era tarde! Agora pintaram um mural no muro de uma empresa de ônibus insinuando que era uma boa pessoa! Pita hipocrisia e a empresa de ônibus ainda deve ter dado autorização para tal! Absurdo! É uma inversão de valores sem precedentes!

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