Murdoch – 1984 em 2023: uma profecia autorrealizável?

O professor Carlos Murdoch convida o leitor a refletir sobre o momento, sobre nosso papel neste processo e como evoluirmos como sociedade e civilização

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Foto de Maksim Goncharenok

Revisitando a obra 1984 de George Orwell, surpreendo-me com os conceitos registrados em 1948, ano da escrita do livro, e sua atualidade no mundo contemporâneo. Neste momento, proponho-me a estabelecer pontos de similaridade com a civilização atual, notadamente, nossa amada TERRA BRASILIS, que porém, pode ser estendida ao momento cultural e político que observamos no planeta. Alerto, porém, que isto não passa de uma reflexão. Faço mais perguntas do que forneço respostas e, por extensão, não pretendo estabelecer a verdade ou “lacrar”[1] o assunto.

1984 contextualiza uma sociedade totalitária em permanente estado de guerra, com uma falsa e contraditória narrativa de liberdade, pois exerce o controle através da supressão das Ideias individuais e da liberdade de expressão.  Com este pano de fundo, vivenciamos a trajetória de Winston Smith, um burocrata cuja função principal é censurar a comunicação (mídia) e alterar a narrativa do presente e do passado. Através do olhar do personagem principal, vivenciamos este mundo distópico, decadente, violento e desolador. Fica a pergunta: estamos vivenciando as previsões de 1984? Vamos aos argumentos:

“Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”.

A afirmativa se relaciona diretamente com a atual guerra de narrativas que observamos nos meios da mídia mainstream, nas redes sociais e na indústria das fake-news. Campanhas intensas apregoam que o passado recente “não é exatamente” como o que vivenciamos.  Na terrinha – apenas para exemplificar – observamos a condenação e o linchamento público de decisões judiciais, mesmo que embasadas em testemunhos, confissões, evidências materiais e julgadas em diversas instâncias.  Condenados confessos retornam à vida pública, inimigos históricos se associam, como se os fatos recentes nunca tivessem ocorrido e como se pudéssemos retornar ao mundo “anterior”. As possíveis mudanças de atitude estão sendo apagadas, as confissões revistas, as condenações revisadas… Uma tremenda oportunidade perdida para recomeçar. O que nos direciona à mais um conceito de 1984:

“Duplipensar”.

Segundo Orwell: “É o poder de manter duas crenças contraditórias na mente ao mesmo tempo, de contar mentiras deliberadas e ao mesmo tempo acreditar genuinamente nelas, e esquecer qualquer fato que tenha se tornado inconveniente”. 

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Parece familiar? E é! O mais assustador é que parte da população, de fato, é induzida a acreditar em verdades, no momento, “oficialmente” criadas. Narrativas de vidro inconsistentes, incompatíveis com a história (muito) recente. O “Duplipensar” gera uma inflexibilidade de pensamento, pois o indivíduo, mesmo enxergando determinados fatos, se blinda diante da veracidade do que observa, ficando aprisionado em sua crença – já dogmática – original. Ao aceitar narrativas sem uma observação crítica, torna-se manipulável e com a porta aberta para futuras inserções de pensamento. O “Duplipensar” é fruto do “Buraco na Memória” (outro termo Orwelliano) que ocorre através da destruição e desinterpretação de documentos históricos “inapropriados” com o intuito de alterar o passado. Em 1984, o “Duplipensar” e o “Buraco na Memória” são de responsabilidade do “Ministério da Verdade”. Qualquer outra interpretação fica por sua conta (e risco).

“Crime-ideia”.

Pensar diferente é crime. As “Patrulhas do Pensamento” (Thought Police – Orwell) estão à solta. Anteriormente pelo “cancelamento” do indivíduo de modo orgânico via redes sociais. Recentemente, apesar de estarmos em uma democracia, episódios como o imbróglio entre o STF e o Telegram exalam o desagradável odor da censura.

“Doutrinação Jovem”.

O conceito de que a limpeza do pensamento se dá através da troca de gerações se manifesta no país por meio do nível de autonomia intelectual do indivíduo produzido pelo nosso sistema escolar – leia-se: ensino fundamental e médio. Sistemas como a “aprovação automática” engordam estatísticas, porém, não produzem resultados. Os pífios números do PISA (programa Internacional de Avaliação de Estudantes) colocaram o país (2018) na 66a posição dentre os 78 avaliados. O próprio relatório oficial do MEC sobre a avaliação indica que 68% dos estudantes não alcançam o nível básico de matemática e 50% não possuem o nível básico de leitura. Reitero que ambas as funções (leitura e lógica – função matemática) são componentes da formação do pensamento crítico e da argumentação. Por sua vez, a capacidade de interpretar e analisar, são essenciais para a formação do cidadão, para que este se empondere de suas capacidades, direitos e deveres, gerando autonomia intelectual e contribuindo para a diminuição da desigualdade.

Ao privar a juventude do acesso a estas competências, estamos acentuando a distância social e fechando portas. Por não possuir uma visão crítica (com critério – identificar – analisar – concluir) sobre a realidade que o cerca, o jovem se torna uma presa fácil para ser transformado em massa de manobra. O Brasil gasta 6% de seu PIB com educação. Mais do que muitos países com educação referencial. O resultado se manifesta na universidade, onde 50% dos estudantes não alcançam o nível de proficiência em termos de alfabetização (INAF – Indicador de Analfabetismo Funcional).

“Novilíngua”.

O “novo idioma” oblitera o vocabulário e as estruturas mentais que alimentam o raciocínio. Reduzindo ao mínimo o número de palavras, limita-se a extensão do pensamento, extinguindo-se conceitos “proibidos” que desaparecem à medida em que a população é renovada (troca geracional). Ecos da “Novilíngua” são percebidos no linguajar “politicamente correto” contemporâneo. “Todes” de acordo?

“O Grande Irmão está de olho em você”.

Talvez alguns dos leitores não reconheçam a origem do nome do programa “Big Brother”, porém, o título é cinicamente preciso: a eterna vigilância. A ideia atrelada ao conceito “Big Brother” é a de que tudo o que você faz, fala, pensa, ou mesmo, onde vai, está sendo vigiado por um conjunto de instituições – públicas e privadas capazes de traçar um perfil muito preciso de suas necessidades, desejos, opções e inclinações políticas. Todos estes dados terminaram por criar campos de investigação: Big Data – seus algoritmos de intepretação e previsão e a própria inteligência artificial. Sem falar nas câmeras e sensores das Cidades Inteligentes. Renunciamos à nossa liberdade e privacidade ao aceitarmos, de bom grado, os smartphones (hoje tudo é smart). Esta “prisão à cèu aberto”, já havia sido prevista por Jaques Attali no livro seminal “Uma breve história do futuro” (2008).  Não à toa, Orwell descreve a ferramenta de controle como “teletela” – que transmite imagens e monitora o indivíduo ininterruptamente. Já viu isto em algum lugar?

A obra de Orwell é um produto de seu tempo, da incerteza do pós-guerra e de sua visão de mundo. Muitos dos conceitos aqui descritos, de uma forma ou de outra, já eram vigentes na época como o assassinato de uma língua (o catalão sob o regime de Franco) e o cancelamento histórico Stalinista. O maior mérito é condensar as ideias e agregar outras – como a tecnologia utilizada para o controle individual.

Será o ChatGPT a materialização imaterial do Grande Irmão? Estamos alimentando a IA diariamente à uma velocidade imensurável. Segundo a Forbes[2], 89% dos estudantes (EUA) já o utilizam para as tarefas escolares. A possível utilização da inteligência artificial como uma bengala nos lança em um círculo vicioso onde nos tornamos cada vez menos autônomos intelectualmente. Quanto mais dependemos da tecnologia (neste sentido), menor a nossa liberdade individual. A IA já existe faz tempo, porém agora, temos uma interface direta, quase como se conversássemos com um oráculo ou uma divindade. Como uma profecia autorrealizável estamos caminhando para as distopias de futuro mais sombrias previstas na ficção. A IA e o Big Brother são realidades cotidianas. Quem controla o ChatGPT? Quem está no final da linha da IA?

Fica o convite para refletirmos sobre o momento, sobre nosso papel neste processo e como evoluirmos como sociedade e civilização, sem claudicarmos sobre os obstáculos e armadilhas, por nós, gerados no passado. Este é o futuro que queremos?

Parafraseando Peter Drucker: “A melhor forma de prever o futuro é criá-lo”.

Por que não mudarmos o rumo desta prosa?


[1] aplicar lacre em; selar ou fechar com lacre. (Oxford Languages)

[2] https://www.forbes.com/sites/chriswestfall/2023/01/28/educators-battle-plagiarism-as-89-of-students-admit-to-using-open-ais-chatgpt-for-homework/?sh=687ff215750d

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