No século XIX, a palavra “evolução” foi estigmatizada fortemente por todas as chamadas ciências humanas. Isso se deveu ao impacto produzido pela repercussão da obra de Charles Darwin, “A origem das espécies”, de 1859, cujo título definitivo só foi dado mais de uma década depois. Nela, o cientista britânico demonstra e comprova uma teoria de evolução das espécies vivas do planeta — flora e fauna — baseada em meios naturais de adaptação, seleção, permanência. Consequentemente a isso, em ciências reconhecidas como “naturais”, como é o caso da Biologia, o substantivo “evolução” passou a correr em parelha quase obrigatória ao verbo “melhorar”: subjaz ao texto darwiniano que só os “melhores”, mais “evoluídos”, sobrevivem.
A repulsa ao conceito de evolução, com seu par biológico obrigatório, que aponta para a melhora, se deu nas ciências humanas antes de tudo por uma questão que a historiografia da epistemologia é capaz de discernir. No século XIX e início do século XX, a epistemologia, ou filosofia da ciência, estava seriamente ocupada em isolar disciplinas limítrofes; e, para isso, muitas vezes tornava-se necessário certo repúdio a conceitos que se tivessem timbrado muito loquazmente em outras ciências.
Foi dessa forma que, por exemplo, a Linguística cauterizou de sua teoria geral qualquer menção ao “inconsciente” (“Unbewusst”) do pai da Psicanálise, Sigmund Freud. A mesma Linguística proscreveu e exilou o conceito de “evolução”, redimindo-o com outros análogos, como, para dar um exemplo suficiente, o termo “deriva” (“drift”), cunhado por Edward Sapir. “Certo” e “errado” eram monumentos condizentes exclusivamente ao pensar jurídico e/ou teológico, e jamais, sob hipótese alguma, deveriam aproximar-se dos torrões sagrados da Linguística, que, ingenuamente, prescrevia leis ainda mais dogmáticas.
A Sociologia e a Antropologia fizeram o mesmo. Transformaram em tabu que se expressassem conceitos como “evolução” ou “inconsciente” quando se tratasse de seus objetos comuns: a coletividade humana: a primeira vê a coletividade sob o ângulo da organização social; a segunda, pelo ângulo da organização cultural. Mas coletividade humana e seu estudo pertencem a ambas.
Sobre “inconsciente coletivo”, termo que decerto causou o desquite definitivo entre Freud e Jung, não caberão a este pequeno artigo de opinião menções mais longas.
Mas com “evolução”, sim, se preocupará este texto, de forma declaradamente ensaística, isto é, livre-pensadora.
Antes do mais, convém lembrar que, ainda no que se refere à historiografia da epistemologia, o fim do século XX e o início do século XXI já não precisam propender pudores e reticências em relação a unir o que fora asceticamente desunido no século XIX e início do XX. Hoje, podem-se, com destemor, unir conceitos de ciências e disciplinas afins ou, até mesmo, aparentemente não afins. A prática multidisciplinar e transdisciplinar, hoje, só assusta aos cientistas caturros, oitocentistas. É assim, por exemplo, que muitos linguistas AINDA cospem fogo contra os estudos gramaticais, filológicos, históricos etc., como se a língua lhes pertencesse exclusivamente, e como se a língua só existisse na modalidade oral, espontânea, distensa, informal etc., etc. Parecem esquecer-se muitos da face histórico-antropológica que toda língua traz consigo.
Sim, línguas, de fato, não “evoluem” no sentido darwiniano, porque línguas não “melhoram” nem “pioram”: apenas mudam. É intrínseco às suas naturezas. E é justamente com lastro nos estudos gramaticográficos e filológicos que essa dinâmica é comprovável. Livre-se dessa empiria e afirmar a mudança inerente ao caminho de todas as línguas se transformará em mero exercício de especulação prazenteira, diletante, amadora.
Dessa forma, em ciências humanas em geral — Linguística inclusa —, o que parece permanecer é um preconceito não ao conceito em si, mas aos estigmas que lhes foram cravados nos anos oitocentos, cujo objetivo, como ficou registrado, era, naquele momento, promover uma fronteira-separação inequívoca entre as disciplinas, um limite acima do bem e do mal, como que para fornecer-lhes chancela de “necessidade” de existência e… sobrevivência.
Era o repudiado darwinismo atuando não na superfície do pensamento dos cientistas que o repudiavam, mas, sim, no seu mais íntimo âmago e no imo das suas engrenagens.
Hoje, parece, portanto, haver AINDA disputas e debates não sobre conceitos em si mesmos, mas sobre estigmas de conceitos, deformados e congelados em pré-concepções que serviram ao século XIX, mas que não servem mais ao século XXI, ou, para ser mais específico, atrapalham a epistemologia do século XXI, multidisciplinar por essência.
Na expressão do Barão do Rio Branco — e evoco-o porque este artigo é sobre povos —, substitui-se a ideia de “fronteira-separação” (a epistemologia dos séculos XIX e início do XX) pela ideia de “fronteira-cooperação” (a epistemologia contemporânea). Fronteira não precisa mais rimar com limite. O limite é apenas um dos elementos — e até muito primário — da fronteira.
A ideia de nação é ampla em demasia, e certamente deveria ser-lhe endereçado outro artigo, que não este.
Seria a nação “imaginária”, “inconscientemente coletiva”, “arquetípica”, “econômica”, “política”, “geográfica”, “cultural”, “étnica”? Não importará a este texto se o que se imiscui no conceito de “nação” é uma prevalência antropológica, física, jurídica, diplomática, freudiana, marxiana, junguiana, filosófica, biológica, teológica… Apenas importa a este artigo denominar “nação” como o conjunto de pessoas que possuem a mesma “nacionalidade” — tautologia, pleonasmo e truísmo para alguns, mas ainda assim trata-se de uma definição aristotelicamente eficaz.
Partindo-se dessa ideia de “nação” como o local, geograficamente demarcado ou não, que comporta indivíduos com a mesma nacionalidade, retroceda-se necessariamente à ideia de desenvolvimento.
Pensadores de todos os campos se ocupam da noção de desenvolvimento. É uma espécie de pedra filosofal de toda e qualquer forma de pensamento, inclusive do senso comum.
Então, cabe a pergunta: o que é o desenvolvimento de uma nação? Ora, este conceito é cediço e sempre resvalará em limites ou fronteiras com outros conceitos, que podem estagná-lo ou complementá-lo.
De uma forma ou de outra, cabe um esboço. Algumas linhas básicas parecem redundantemente comuns quando se fala em desenvolvimento. Muito embora a problemática do “conceito” VERSUS o “estigma do conceito” — fantasma do século XIX que ainda assombra alguns “pensadores” do século XXI — persista em arrastar seus lençóis encardidos aqui e ali.
Desenvolvimento nacional, poucos negariam, se espraia por algumas frentes. Sublinharei apenas três. Há o desenvolvimento tecnológico, o desenvolvimento pacifista e o desenvolvimento moral.
O desenvolvimento tecnológico esbarra (e infelizmente muitas vezes empaca) na mera ideia, antes de tudo, de industrialização (fantasma do século XIX), crescimento urbano (idem), verticalização do espaço ecúmeno e assim por diante. Parece por vezes impossível que muitos pensadores não tenham ainda concluído que desenvolvimento tecnológico é algo muito maior do que as ideias há pouco apontadas. É tecnologicamente desenvolvida uma nação que apresenta a seu povo o aporte necessário à livre circulação de conceitos tanto científicos quanto meramente consensuais, o que permite que soluções de sustentabilidade e crescimento ordenado e próspero sejam alcançadas. Dessa maneira, muitas nações africanas e mesmo indígenas são mais tecnologicamente desenvolvidas do que muitas nações do Atlântico Norte.
O desenvolvimento pacifista pode ser descrito como a disposição e a disponibilidade para não querer o que não é seu. Uma definição simples, caseira, quase paroquiana; mas que funciona aristotelicamente. A regra de ouro — “Não fazer ao outro o que eu não gostaria que fizessem comigo” — prevalece como uma verdadeira sequência de Fibonacci.
Por último, o desenvolvimento moral de uma nação se revela nas simpatias e antipatias, afinidades e ojerizas de um povo em sua relação com o Estado. Um povo moralmente desenvolvido terá repulsa absoluta e incondicional a qualquer forma de corrupção, sob não importa que pretexto; envergará a túnica da dignidade de reconhecer erros passados para não repeti-los, ainda que para isso seja necessária a intervenção e subscrição num tratado internacional, como o de Madri, o de Vestfália, o de Versalhes, o de Tóquio e tantos outros; trará no alto de sua hierarquia de valores a justiça; sua honra não será subjetiva e cheia de caprichos, mas, sim, submetida à procura exaustiva pelo que é certo e útil à coletividade, e não pelo que é fortuitamente e aparentemente mais fácil e pragmático.
E, por fim, o que é uma nação “evoluída”? Reevocadas todas as ressalvas sobre os conceitos, estigmas e fantasmas por detrás da ideia de “evolução” pós-Darwin, parece muito claro que a nação evoluída será aquela que dispuser do próprio desenvolvimento, acima bosquejado, para “repartir o bolo” em fatias mais próximas possíveis da igualdade entre todos os seus membros.
A epilinguagem de uma nação EVOLUÍDA assenta na busca incessante pela igualdade de condições, que respeita as singularidades individuais e a proporcionalidade do que deve ser distribuído a todos e a cada um, segundo as contingências diferentes intrínsecas à (des)organização social. Isso não significa, de forma alguma, igualdade de resultados, porque esse tipo de “igualdade”, já suficientemente fracassado em todas as tentativas de “comunismo” mundo afora, pressuporia que os seres humanos todos tivessem os mesmos talentos, as mesmas vocações e as mesmas vontades.
Pressuporia que fôssemos todos rigorosamente idênticos, como clones uns dos outros; não respeitaria nossas singularidades. Uns querem morar na cidade, outros querem morar no campo. Uns gostam de girassol, outros gostam de rosa. Os resultados são diferentes — felizmente — porque os seres humanos são diferentes em gostos, aptidões, aspirações, metas, motivações. Nascemos diferentes, e qualquer Estado que tente aniquilar isso será confinado — como aconteceu com o Reich de Hitler e com o Gulag de Stalin — no abismo do oblívio.
Tratar todas as pessoas como se fossem ou devessem ser homogêneas é exatamente o que qualquer fascismo, não importa a etiqueta que use, tenta promover.
Victor Hugo resumiu esses ideais de nação evoluída, que une ideais de justiça e proporcionalidade, em um trecho de “Os miseráveis”. Disse o gênio hugoliano: “Ser santo é uma exceção; a regra é ser justo: por isso, errem, pequem, caiam, mas sejam justos!”
Por falar em santo, São Bento, em uma de suas Regras, vai além: “É preciso que se aplique justiça acompanhada de misericórdia, mas também é preciso que se aplique misericórdia acompanhada de justiça”.
Trata-se de uma equação sutil e frágil como a estrutura da bolha de sabão, mas que permeia, ainda que de modo inconscientemente coletivo e até arquetípico, todas as nações que buscaram ser além de meramente desenvolvidas: nações que buscaram ser — evoluídas.
Com autoria em conjunto de Alexandre Chini, Juiz de Direito do TJERJ