Número de jogadores compulsivos aumentou nos últimos anos por conta de sites de apostas online

Clínica especializada observou um aumento de cerca de 500% nos atendimentos e 100% nas internações. Período de crescimento condiz com o maior número de bets operando no Brasil

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Foto meramente ilustrativa de de PhotoMIX Company

*Reportagem produzida em colaboração com Fernando Flores

Inúmeras histórias são contadas em uma sala no centro do Rio de Janeiro. Gente que perdeu muito – ou tudo – do que tinha para o vício em jogos de aposta. Nas reuniões dos Jogadores Anônimos (JA), pessoas dos mais variados perfis, idades, gêneros, classes sociais e estilos de vida, são acolhidas e contam suas experiências. O número de membros desses encontros relatando que foram derrotados pelas apostas online chama a atenção. “O meu salário ia embora no dia que eu recebia, tudo apostando pelo celular“, diz um deles. Na clínica Jorge Jaber, na Zona Oeste da mesma cidade, a situação e as narrativas se repetem.

Especializada em tratamento para dependentes químicos e jogadores compulsivos, a clínica comandada pelo renomado psiquiatra Jorge Jaber observou um aumento de cerca de 500% nos atendimentos para pessoas que tiveram problemas com jogos. O número de internações cresceu 100%. Isso nos últimos três anos, período de crescimento dos sites de aposta no Brasil.

Operando no Brasil desde dezembro de 2018 através da medida provisória (MP) 846, promulgada durante o governo de Michel Temer, o mercado de apostas esportivas será regulamentado pela atual gestão Lula. No último mês de setembro, a decisão passou pela Câmara dos Deputados e agora está em discussão no Senado.

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No Brasil, as bets, como são conhecidos esses sites, podem explorar as apostas comercialmente, com campanhas de marketing e patrocínio aos esportes. No entanto, não operam diretamente no país. Por conta disso, o Estado Brasileiro não arrecada com esse mercado que vem crescendo nos últimos anos. A Lei das Contravenções, de 1941, do governo de Getúlio Vargas, enquadra as casas na categoria de jogos de azar, proibidos em território nacional.

Nos últimos dois anos houve uma proliferação de sites de aposta online no Brasil – também chamados de cassinos online. Segundo a assessoria especializada em gestão de empresas Hand, o número de páginas virtuais brasileiras conhecidas como bets aumentou 160%, enquanto no exterior a expansão no mesmo período não passou de 10%.

Especialistas no tema alegam que no projeto de regulamentação dos jogos de aposta online que está em discussão no Senado brasileiro, a saúde mental de quem utiliza as bets não é um ponto que tem muito destaque. O tema nem é citado na proposta.

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É bom conceituar a atividade do jogo na sociedade. A atividade de jogo tem uma importância na humanidade, no desenvolvimento da humanidade. Foi através dos jogos, dos jogos apostados, que se desenvolveu o conhecimento das estatísticas. O primeiro grande estatístico surgiu de um jogador que elaborou as possibilidades de ganhar em cada jogo. Ganhar e ficar feliz com esse ganho. Então, provavelmente, se tornou também o primeiro banqueiro. O jogo tem uma característica que alegra os participantes. Ele traz uma possibilidade de convivência social, nesse sentido, ele é agradável. Mas como em diversas outras circunstâncias da vida, quando ele passa de um determinado limite, em que ele é um objeto a ser utilizado e se torna o agente sobre as pessoas que estão ali reunidas, ele passa a ter uma função, uma atividade, que não é saudável. A medicina começou a se preocupar com o jogo nos chamados distúrbios de hábitos. Jogo, sexo, álcool passaram a ter a classificação internacional de doenças com o termo dos transtornos dos hábitos. Basicamente, um hábito que não está sendo bom para a pessoa. A cultura do jogo, até a virada do ano dois mil, durante os anos setenta, por exemplo, era uma cultura muito romântica. Via-se o jogo como algo envolvido com uma poesia. Tem a música ‘A Ronda’ que mostra isso. ‘Rolando um dadinho, jogando bilhar…’, diz a letra. Jogo de canastra ou buraco em família, o jogo de dominó no clube, entre outros exemplos de convívio social em torno do jogo. O jogo apostado, dentro do sistema capitalista, compete diretamente com o seguro de vida. Porque quando o indivíduo joga, ele procura ter o benefício do bem-estar imediato, com pouca aplicação de tempo. Jogar é aplicar algo e ter resposta imediata. Já o seguro de vida, o seguro de saúde, a poupança, são aplicações que significam poupar para ter um futuro melhor. Há uma questão antropológica, uma questão capitalista e também há uma questão ligada à saúde, porque quando o indivíduo joga, a sensação da vitória, a sensação que antecede a vitória, gera uma produção de neurotransmissores cerebrais que ocasionam nas emoções, sensações, estímulos em qualquer ser humano. Daí vem o prazer em jogar e jogar valendo dinheiro”, contextualiza o psiquiatra Jorge Jaber.

O Código Internacional de Doenças 11ª versão (CID-11) inclui transtornos relacionados ao uso excessivo de jogos eletrônicos, também conhecidos como game disorder, que em português significa distúrbio em jogos eletrônicos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu essa patologia como “padrão de comportamento persistente ou recorrente”.

A irmandade Jogadores Anônimos, que acolhe pessoas que passam ou passaram por problemas por conta de apostas, não produz estatísticas. No entanto, em contato com a reportagem do DIÁRIO DO RIO, eles informaram que as Linhas de Ajuda (telefones no final desta matéria) vêm recebendo um número cada vez maior de gente pedindo apoio porque não consegue mais parar de apostar em páginas online.

Ainda segundo a irmandade Jogadores Anônimos, somente no atendimento ao centro da cidade do Rio são, em média, quatro pessoas por dia pedindo ajuda. De cada quatro, três são por conta das apostas online. A maioria delas passa a frequentar as reuniões. Alguns conseguem se afastar do vício; outros têm recaídas e voltam a jogar e perder.

“Em muitos casos, o jogador compulsivo se engana, blefa para ele mesmo dizendo que está livre do vício, sai da clínica, volta para casa e retorna ao jogo apostado. O número de pessoas que saem e voltam com o mesmo problema é muito alto. Esse tipo de transtorno que leva ao prazer imediato tende a levar as pessoas a adotar um comportamento desonesto. Não é uma desonestidade predatória, que quer tirar dinheiro dos outros. É uma desonestidade com ele mesmo. Ele vai se enganando e começa a mentir para si e para os outros”, explica Jaber.

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Jorge Jaber e equipe. Foto: Felipe Lucena

Pessoas que estudam o comportamento dos jogadores compulsivos afirmam que a facilidade de ter um celular nas mãos com acesso à Internet e aos sites de aposta online só agrava a situação.

“Fazendo esteira na academia, eu parava de 30 em 30 segundos para olhar minhas apostas“, contou um jogador compulsivo em uma reunião da JA na Zona Oeste da cidade.

Os especialistas também atestam que outro fato que dificulta o tratamento e algum eventual apoio de pessoas próximas é que o vício em jogo “não tem cara”. Normalmente, a pessoa só busca ajuda quando já perdeu todo ou quase todo o patrimônio financeiro e a dependência já minou seu convívio social.

“Ganhei uma herança de um valor considerável, poderia ter usado esse dinheiro para organizar minha vida e da minha família por anos, mas gastei quase tudo apostando online em jogo de futebol. Entrei em depressão, me afastei de todo mundo, tentei me matar. Aí vim buscar ajuda“, relatou outro jogador compulsivo em uma reunião da JA.

Sobre os tratamentos, Jorge Jaber disse que “nós temos uma quantidade muito grande de profissionais no Brasil. Para tratar dependentes químicos e jogadores compulsivos. Amém disso, um das principais formas de combater a doença são os Jogadores Anônimos. São gratuitos e têm uma eficácia muito grande através de seu acolhimento. Existem tratamentos específicos, principalmente psicológicos, que visam a mudança de comportamento e também os tratamentos químicos, com remédios. Nós temos aqui na clínica a internação, que serve para que a pessoa reconheça em primeiro lugar que tem um problema, consiga passar um período em abstinência (normalmente um mês) e passe a produzir dopamina de maneira saudável. A pessoa fica sem celular. Os familiares podem visitar diariamente. Tem tratamento para familiar também e os pacientes podem ligar para quem quiserem através das nossas linhas. Na clínica, o paciente fica sem jogar. Têm muitas atividades aqui, mas nenhuma ligada ao jogo, apostas. O jogador compulsivo vai inibindo o ritmo circadiano, porque ele fica trocando dia pela noite. E isso vai trazendo uma insatisfação geral. O tratamento com remédios também ajuda a reorganizar esse ciclo natural que funciona em nosso corpo”.

As linhas de apoio dos Jogadores Anônimos funcionam diariamente e as datas das reuniões podem ser encontradas através do contato telefônico, por WhatsApp ou no site da irmandade clicando aqui.

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