Por Cristiane Gonçalves é arquiteta e ex-diretora do Departamento de Patrimônio Cultural e Natural do Inepac
A recente publicação em que se noticia a descoberta da fechadura do quarto de D. Maria I parece constituir um momento oportuno para algumas reflexões. Afinal, se girarmos a chave que abre esta porta imaginada, que segredos de alcova nos serão revelados? O que poderia ser o desnudamento de uma cena-romantizada-da-rainha-louca-que-resolveu-se-abrigar-em-um-convento teria força para se concretizar? Ou acabaremos nos deparando com a pequenez da abertura – um simples buraco de fechadura –, que nos oblitera a visão do tamanho do rombo que temos presenciado ante nossos olhos: a dissolução “real” (perdoem o trocadilho!) do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, nosso Inepac.
Como num conto policial, as sequências fotográficas que permeiam a narrativa dão destaque à chapa de ferro dotada de um segredo. O abre-fecha-esconde-revela evoca a materialidade da peça como prova irrefutável dos fatos “históricos”. Em uma espécie de fetiche do objeto, a ação lembra práticas superadas de antiquariato que remontam aos primeiros momentos da preservação, conectando, há mais de duzentos anos atrás, as personagens da trama: a figura resgatada da monarca e as parcerias que, hoje, permitiram a localização da fechadura. As luvas brancas da fotografia, envolvendo a já enferrujada matéria, querem conferir à iniciativa uma aura de cientificidade contemporânea e imaculada.
Resguardariam o ferro do contato com as mãos ou vice-versa? Mais um zoom e quase nos é permitido aferir a espessura do metal e as camadas de poeira e fuligem ali impregnadas. O estranho paradoxo entre imagem e texto poderia ser combatido com o rigor científico de uma acurada contextualização histórica e técnica, respaldada por pesquisadores reconhecidos em suas áreas de atuação e pelo uso de tecnologias de alta precisão. No entanto, ao invés de se atribuir ao achado sua verdadeira escala, do tamanho de sua representação simbólica e de sua importância no século XXI, cede-se lugar à instantaneidade da notícia – pólvora a ser rapidamente consumida no universo voraz e superficial das redes sociais.
Ao se omitirem detalhes de um possível percurso investigativo, nega-se, ao público e aos especialistas, acesso às provas documentais que ligam a concretude da peça à imaterialidade do fato histórico em si; fecham-se canais importantes de conexão e de produção de novas interpretações historiográficas, e abrem-se, de outro lado, largas frestas para especulações fantasiosas. Em resumo, o que vemos é o efeito contrário à pretensa cientificidade e cuidado extremado anunciado pelas imagens.
Mais adaptados à condição de pouca luminosidade da alcova, percebemos fios soltos da trama detetivesca. Não por acaso, a notícia em questão não cita que o Convento do Carmo, cuja restauração se encontra em andamento, reservava até poucos dias atrás parte de suas instalações para abrigar a sede do Inepac. O desalojamento do Instituto ocorreu sem conhecimento da arquiteta que, religiosamente, realizava o acompanhamento da obra e que acabou por solicitar o desligamento de suas funções por não concordar com o cenário que já então se tornava claro.
Sem diretores nos Departamentos de Pesquisa e Documentação (DPD) e do Patrimônio Cultural e Natural (DPCN), o Instituto já contabiliza dez funcionários desligados de seus quadros técnicos, entre maio e julho deste ano. O gigante esforço de desconstrução da história do órgão, por meio do desmantelamento de seu espaço físico e de suas figuras dirigentes e alguns de seus mais experientes técnicos, elos indissociáveis da consolidada memória institucional, é o duro contraponto do conto da fechadura. Resta-nos a palavra e a voz. E isso não é pouco.