O Centro Dom Vital e a renovação da Vida Litúrgica no Brasil

A ideia de Movimento litúrgico corresponde em geral com uma mudança de perspectiva na abordagem sobre o culto cristão, no aspecto do resgate da relação entre a celebração dos sacramentos com a assembleia cristã

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Padre celebrando a missa versus populum na década de 1930 no Mosteiro de Maria-Laach, Alemanha

A renovação da Igreja do século XX foi profundamente marcada por mudanças no modo como a Igreja se expressa em seu modo de rezar e prestar culto. De fato, a liturgia foi certamente um ponto fundamental nas reformas que se seguiram ao Concílio Vaticano II, mas a reforma litúrgica que culminou com os novos livros aprovados pelo Papa Paulo VI, requerida pelos Padres Conciliares, não ocorreu de modo isolado e impositivo, mas foi fruto de um germinar que acompanhou a Igreja desde as primeiras décadas do século passado. 

A ideia de Movimento litúrgico corresponde em geral com uma mudança de perspectiva na abordagem sobre o culto cristão, no aspecto do resgate da relação entre a celebração dos sacramentos com a assembleia cristã. É possível fazer referência a uma primeira experiência de “movimento litúrgico” no século XVIII, na França. Contudo, ele se distingue em muito do que será o movimento da virada do século XIX para o XX. Trata-se de um movimento altamente condicionado por ideias muito presentes na cultura francesa daquele período, como o iluminismo e o jansenismo. Por isso, aqui nos delimitaremos ao Movimento Litúrgico a partir do século XIX. 

No século XIX irá crescer uma tendência restauracionista, em uma perspectiva de aproximação com Roma e de um retorno às fontes da Alta Idade Média. É nesse contexto que, por consequência, terá início um caminho de pesquisa sobre as fontes do Rito Romano a fim de redescobrir suas formas mais originais. É nesse contexto que vão surgir os primeiros núcleos do que será conhecido como “Movimento Litúrgico”.[1] 

Em 1909, Lambert Beauduin pronuncia uma conferência no Congresso de obras católicas de Malines, na Bélgica, que é considerada o manifesto inicial do Movimento Litúrgico do século XX. Nesta conferência, Beauduin fará propostas ousadas, tais como: traduzir o missal romano, para que se tornasse o principal livro devocional dos fiéis e popularizar ao menos a missa dominical e as vésperas; tornar a piedade dos fiéis mais litúrgica e tornar a recepção da comunhão mais acessível; priorizar o uso do canto gregoriano e proporcionar aos coristas uma reciclagem dos estudos sobre música nos centros de irradiação dos mosteiros beneditinos.[2]

As proposições de Beauduin foram fortemente incentivadas pelo episcopado belga, especialmente pelo Cardeal Mercier, principal patrocinador de suas ideias. Tendo conquistado o apoio dos bispos, logo iniciou um movimento de conquista dos padres seculares, iniciando a publicação de duas revistas especializadas que alçaram enorme sucesso: Questions liturgiques et paroissiales e Semaines liturgiques.

Longe de ser um fenômeno que permaneceu isolado apenas na Europa, o chamado “Movimento Litúrgico” teve grande influência e núcleos no Brasil. Há duas instituições profundamente coligadas que foram importantíssimas nesse processo de difusão: o Centro Dom Vital, capitaneado por Alceu Amoroso Lima, e o Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, com o monge alemão D. Martinho Michler OSB. Em 1933, recém-chegado ao Brasil, Michler será incumbido de proferir um curso sobre liturgia, que será, provavelmente, o marco inicial do Movimento Litúrgico no Brasil.[3]

Imagem2 1 O Centro Dom Vital e a renovação da Vida Litúrgica no Brasil
Dom Martinho Michler, abade do Mosteiro de São Bento entre 1948 e 1969.

Inspirados pela palavras de Michler, a Ação Universitária Católica desenvolverá um centro de liturgia que substituiu o antigo núcleo de piedade, fazendo com que aos poucos a liturgia se tornasse a fonte de espiritualidade do laicato organizado no Brasil. É de se lembrar também, que nesse período Alceu Amoroso Lima era o líder da Ação Católica no Brasil, o que fazia com que as ideias que eram produzidas no Centro Dom Vital no Rio de Janeiro irradiassem para a totalidade do laicato brasileiro.

(…) Por essa ocasião D. Martinho Michler OSB abriu um curso de Liturgia no Instituto Católico, que o nosso Centro Dom Vital fundara e mantinha. Formou-se na Ação Universitária Católica um “Centro de Liturgia,” congregando a elite do numeroso grupo de estudantes aucistas. Vem dessa época a péssima fama que as palavras “liturgia” e “litúrgico” têm para muitos, graças ao ardor explosivo dos jovens.”[4]

De 10 a 15 de junho de 1933, foi organizado pelo centro de liturgia um retiro espiritual para universitários católicos, pregado por D. Martinho, onde foi celebrada a primeira missa Versus Populum no Brasil, além de ter sido a primeira missa dialogada fora do mosteiro ou de uma casa religiosa.[5] 

Esse retiro marca o início do Movimento Litúrgico de forma mais constante e evidente no país. É a partir dele que se começará a ter missas dialogadas, com os fiéis respondendo ao celebrante, rezadas por D. Martinho semanalmente no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Em 1935 inicia-se algo mais ainda mais ousado:

Essas missas dialogadas no Mosteiro de S. Bento funcionaram até dezembro de 1935. Depois foram transferidas para a Praça 15, em uma das salas da Coligação Católica Brasileira, transformada em capela, a gosto, com um altar construído em jacarandá, de tal maneira que “permitia celebrar a missa de frente ou de costas para a assistência. Solução prudente, motivada por reticências ou reações incipientes contra a forma de altar que queríamos introduzir”[6]

Dom Martinho contava, especialmente, com o apoio de Dom Sebastião Leme, então Arcebispo do Rio de Janeiro, que chegou a celebrar missas dialogadas ao modo do Movimento Litúrgico para o Centro Dom Vital. O Cardeal, pessoalmente, não era um homem ligado a essa renovação, mas apostava nos bons frutos que estava legando, especialmente no meio intelectual brasileiro, que era campo notável de atuação do Cardeal.

Essa renovação litúrgica no Rio de Janeiro, capitaneada por D. Martinho e Alceu Amoroso Lima, apresentou resultados práticos para o crescimento da Igreja. Um desses fatos notáveis foi o ingresso em massa de jovens da elite intelectual da Ação Católica na vida religiosa beneditina, após frequentarem o grupo de liturgia e os retiros pregados por Michler.

Lá pelos idos de 1940, um grupo de rapazes, que integrava o Centro Litúrgico de Ação Universitária Católica, resolveu ingressar na vida monástica. Eram todos muito brilhantes. Haviam tomado essa decisão sob influência de Dom Martinho Michler, um padre beneditino de origem alemã que se radicou no Brasil e que aqui revolucionou a liturgia. Foi ele o criador do Movimento Litúrgico, que nasceu na nossa Praça XV. Homem inteligente, exerceu enorme influência sobre esse pequeno grupo universitário. Alguns deles tornaram-se depois personalidades famosas como o Padre Veloso, reitor da PUC, o bispo Dom Clemente, o abade Timóteo, o poeta Dom Marcos Barbosa, o abade Penido, e outros.[7]

Entre os personagens que Alceu cita estão nomes ímpares para a implantação da futura reforma litúrgica do Concílio Vaticano II no Brasil: Dom Clemente Isnard foi responsável pela tradução da edição brasileira do Missal Romano; Dom Marcos Barbosa foi o tradutor primoroso dos Hinos da Liturgia das Horas, reformada de acordo com os decretos conciliares.

Pode-se dizer que os ideais do Movimento Litúrgico centravam-se em alguns aspectos primordiais: participação das assembleias litúrgicas, retorno às fontes originais do Rito Romano e o desenvolvimento de uma teologia litúrgica que reconhecesse seu lugar como celebração do mistério cristão e não mais enxergá-la a partir de uma visão reducionista de que a liturgia seria mera ação ritual que circunda o mistério, mas que não se identifica com ele. 


[1]     SILVA, José Ariovaldo. Avanços e retrocessos no movimento litúrgico no Brasil. Revista de Cultura Teológica, São Paulo, n. 31, p. 109-131, abr./jun. 2000

[2]     BONNETERRE, Didier. The Liturgical Movement: From Dom Gueranger to Annibale Bugnini.

[3]     SILVA, José Ariovaldo. O movimento Litúrgico no Brasil: Estudo Histórico. Petrópolis: Vozes, 1983

[4]     Revista A Ordem, 1942, Ed. 112

[5]     SILVA, José Ariovaldo. O movimento Litúrgico no Brasil: Estudo Histórico. Petrópolis: Vozes, 1983

[6]     SILVA, José Ariovaldo. O movimento Litúrgico no Brasil: Estudo Histórico. Petrópolis: Vozes, 1983 P. 42

[7]     AMOROSO LIMA, Alceu. Memória Improvisadas. Vozes. Petrópolis, 1973. P. 160

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