O RIO DE ÍCARO II – inclusivo e transcendental 

O Pão de Açúcar está executando um projeto que irá revolucionar a experiência dos seus visitantes: uma tirolesa de 755m de comprimento

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Foto: Divulgação/Bondinho Pão de Açúcar
  • * Por Manoel Vieira

O Pão de Açúcar, que é um dos dois mais fascinantes pontos turísticos do Rio e do Brasil, sendo o outro o Cristo Redentor, está executando um projeto que irá revolucionar a experiência dos seus visitantes, por assim dizer, mais avantgarde: uma tirolesa de 755m de comprimento tem tudo para revigorar o turismo, a engenharia e o pertencimento cariocas.

É certo que o turismo de aventura ocupa cada vez mais espaço dentre aqueles que são atraídos por uma dose a mais de adrenalina. Além disso, a selfie se incorporou ao comportamento humano de tal forma que uma foto vale mais do que mil palavras. Por vezes, mais até do que a própria viagem. 

Nesse ponto, um adendo: na tirolesa, todo item solto vai em uma mochila especialmente desenhada para a cadeirinha. Selfie mesmo só se acoplarem uma câmera fixa ao sistema. Vai aí uma ideia.

Claro, é bem verdade que determinadas experiências do turismo de aventura estão reservadas a uma parcela ainda diminuta da sociedade, mas que está em pleno crescimento. Afinal, quase todos nós conhecemos alguém que já se jogou de um penhasco num bungee jump, já desceu alguma cachoeira de rapel ou já saltou de paraquedas ou asa delta. E ainda que seja comum os “Pepês” que nos brindam com vôos amalgamados à paisagem costeira carioca para os lados de São Conrado, não é comum ver nenhum “Ícaro” pelos lados do Pão de Açúcar. Então que a ideia de proporcionar um vôo suspenso por cabos a partir do Pão de Açúcar me agradou logo de cara.

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Na qualidade de arquiteto especializado em patrimônio cultural, fui convidado para assistir a apresentação do projeto elaborado pelo escritório de arquitetura e design Índio da Costa, um dos melhores e mais tradicionais do Rio.

A Pedra, a Mulher e o Engenheiro

Mas antes de abordar o projeto, é importante falar da Pedra, da Mulher e do Engenheiro, nessa ordem. O Pão de Açucar, um gnaisse facoidal (granito) monolítico de 395m de altura, possui cerca de 600milhões de anos e foi formado a temperaturas de aproximadamente 600 ºC quando da formação do supercontinente Gondwana.

A conquista do Pão de Açúcar, pelo seu flanco leste, foi alcançada pela primeira vez que se tem notícia em 1817. O feito extraordinário foi da inglesa Henrietta Carstairs, aos 39 anos de idade, fato que recontado neste oito de março ganha contornos de homenagem às mulheres. Teria sido, portanto, a primeira pessoa a vislumbrar a paisagem vista de um dos mirantes mais bonitos do mundo, o que me leva a pensar se não haveria lugar para uma estátua em sua homenagem em algum lugar lá em cima.

Desnecessário desenvolver sobre o quão esse feito feminino afetou o gênero masculinho (licença poética) da época. Afinal, não seria surpresa, por mais patético que seja, ver algo do tipo acontecer mesmo nos dias de hoje. Mas voltando ao que importa, é de um apagamento abominável que uma mulher estrangeira, que ainda tão pouco se saiba dela, tenha sido a primeira pessoa conhecida a subir a pedra mais icônica da cidade e isso não seja fato amplamente divulgado e celebrado. Nascia, dessa forma e ao mesmo tempo, o montanhismo e o fetiche turístico pelo Pão de Açúcar.

Quase cem anos depois, em 1908, quando coordenava a Exposição Nacional daquele ano na Praia Vermelha, o Engenheiro Augusto Ferreira Ramos teve a visionária ideia de criar o que chamou de “caminho aéreo” até o Pão de Açúcar. A obra de engenharia era absolutamente desafiadora para a época. Importante destacar que existiam até então apenas dois teleféricos do tipo no mundo, sendo um na Espanha e o outro na Suíça, que foram facilmente superados pelo teleférico do caminho aéreo do Pão de Açúcar tanto em distância quanto em complexidade. Afinal, subir com cerca de quatro toneladas de equipamentos, utilizando 100 alpinistas e um pequeno exército que totalizava cerca de 500 funcionários foi, sem dúvida, um dos maiores desafios enfrentados pela engenharia brasileira e mundial na ocasião, gerando novas tecnologias e procedimentos para empreendimentos de engenharia em altura. E aí que também penso se não haveria um lugar de destaque para a importância desse feito para a engenharia brasileira, que formou outros gênios reconhecidos mundialmente, como Joaquim Cardoso, Bruno Contarini e José Carlos Sussekind.

É importante sublinhar que a falta de um planejamento macro entre as muitas alterações já empreendidas no caminho aéreo desde a sua criação gerou uma arquitetura de certa forma desconexa que passo a chamar de espontânea. Essa arquitetura espontânea, que caracteriza a ocupação dos topos dos morros da Urca e do Pão de Açúcar, ocasionou uma série de problemas de fluxo que dificulta e, por vezes, até impede, o acesso a todas as atrações do passeio pelo caminho aéreo. E isso é compreensível principalmente se considerarmos que desde a sua criação, que se confunde com os primórdios do turismo brasileiro – quando os primeiros grandes hotéis começam a se instalar na cidade para absorver o público esperado para a Exposição do Centenário da Independência do Brasil – a demanda turística no local só aumentou. Além disso, a Lei de Acessibilidade é recente (2000) e as questões inerentes a mobilidade não costumavam ser consideradas com maior seriedade em projetos de arquitetura antes da sua criação.

Por sua importância na composição da paisagem, o Pão de Açúcar e os morros da Urca, Cara de Cão e Babilônia seriam tombados pelo IPHAN em 1973. Porém, nada disso impediria que, em 1979, Jaws parasse o mecanismo de tração das máquinas com as mãos, partisse o cabos de aço do bondinho com os dentes e promovesse a mais extraordinária luta nas alturas que o agente 007, James Bond, já viveu. Era talvez o auge (ou prelúdio do fim) da política da “boa vizinhança”, empreendida pelos EUA.

Daí em diante é história do Bondinho do Pão de Açúcar que não acaba mais. Cabe, no entanto, não deixar passar que, ao longo de mais de 110 anos, não há registro de acidentes graves no caminho aéreo do bondinho, o que coloca o serviço entre os mais seguros do planeta, sendo a sua manutenção um exemplo e tanto para os nossos governantes que por tantas vezes falham nesse quesito em tarefas muito mais simplórias.

O projeto

Como já dito mais acima, o projeto da tirolesa foi contratado ao escritório de arquitetura e design Índio da Costa, que está no mercado carioca há cerca de 40 anos, o que é algo digno de nota se considerarmos o quanto pendulou a economia do Rio e especialmente o mercado da construção civil nos últimos tempos. Índio da Costa teria sido responsável décadas atrás por outros projetos elaborados para as estações do bondinho, o que deve ter pesado a seu favor na concorrência promovida pela empresa que administra o bondinho.

O projeto técnico da tirolesa, feito pela Aerofun Fantasticable, líder mundial de transporte gravitacional (ou seja, líder mundial de projetos de tirolesas), além de propor uma inovação na experiência de quem visita o Pão de Açúcar, busca equacionar os problemas de fluxos acima mencionados. Nesse sentido, o projeto avança de forma muito feliz sobre as questões de fluxo e acessibilidade que se transformaram num grave problema para a fruição do equipamento turístico. A solução, do ponto de vista do impacto a visibilidade e ambiência me pareceu muito satisfatória, uma vez que aproveita os espaços já existentes, com poucas alterações, garantindo uma fisionomia muito próxima da já existente. Torna a visita muito mais fluida, inclusive privilegiando o visitante que chega pelas trilhas, o que sempre foi de certa forma preterido pelas antigas administrações, tendo recebido tratamento diferente há alguns anos. Esse novo olhar sobre o visitante que não compra o bilhete, inclusive, parece-me ressignificar a relação do “negócio”, entendendo tanto o caráter público do acesso ao cume quanto a visão de que o turista trilheiro merece o mesmo acolhimento que um turista pagante.

Esse novo olhar parece permear o projeto como um todo, já que o trilheiro deixa de acessar o terraço principal do mirante do Morro da Urca pelos fundos e passa a ter uma delicada rampa de acesso que passa por baixo do ponto de chegada dos bondes na estação, sendo, ao mesmo tempo, uma intervenção sutil, mimetizada com a floresta, mas que estabelece uma chegada de alguma maneira monumental, uma vez que permite ao visitante vislumbrar a exuberância da paisagem nesse caminho, o que é impossível no caminho hoje existente.

O projeto da tirolesa é simplesmente incrível. Ele propõe a experiência mais extraordinária que eu imagino que seja possível no Rio: ela oferece um mergulho transcendental do Pão de Açúcar até a Urca através da paisagem cuja beleza foi chancelada pela UNESCO como patrimônio cultural. O voo de Ícaro se torna realidade nas montanhas do Rio de Janeiro, sem os riscos de que suas asas sejam derretidas pelo Sol.

Considerando que o Rio de Janeiro, segundo estudo do Conselho Mundial de Viagens e Turismo, está hoje entre as cinco cidades que tiveram o maior crescimento do PIB em 2022 (9% comparado ao de 2019), ficando atrás apenas de Doha, Varsóvia, Sanya e Orlando, potencializar os atrativos e trade turístico da cidade é um dos caminhos que devem ser trilhados para recolocar a economia da cidade no seu devido lugar. E se pudermos fazer isso voando, tanto melhor.

Caminho Aereo do Pao de Assucar O RIO DE ÍCARO II - inclusivo e transcendental 
O RIO DE ÍCARO II - inclusivo e transcendental 
Trechos da coluna “Melhoramentos do Rio”, sob o título “O Caminho Aéreo do Pão de Assucar”. Gazeta de Notícias, 13 de junho de 1912 – http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=103730_04&pagfis=30325

Quer seja pela ampliação do caráter inclusivo que está na origem do caminho aéreo, que permite a fruição da paisagem descortinada no topo do Pão de Açúcar àqueles que, por outras vias, não seriam capazes de subir, quer seja pela extraordinária experiência transcendental que essa atração será capaz de suscitar, ressignificando a experiência de quem já conhece o lugar ou tornando-a ainda mais mágica para quem nunca foi, aplaudir a iniciativa é um movimento muito natural.

O Rio precisa voltar a brilhar e são projetos como esse que irão contribuir para isso.

Manuel Vieira O RIO DE ÍCARO II - inclusivo e transcendental 
Manoel Vieira é arquiteto e urbanista, conselheiro do CAU-RJ, especializado na área de Patrimônio Cultural, foi superintendente do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) do Rio de Janeiro, diretor do INEPAC, órgão estadual do Patrimônio Cultural.

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