‘O Rio de janeiro tem que se tornar uma cidade mais humana, mais igualitária’

O Diário do Rio entrevista a engenheira carioca, Ana Paula Kasznar, para falar sobre como é vista a cidade do Rio de Janeiro pelos parisienses

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Praia de Copacabana / Foto: Ana Paula Kasznar

As cidades, assim como as pessoas, desenvolvem ao longo das suas trajetórias qualidades, defeitos e vícios que fazem delas entidades absolutamente únicas no mundo. As cidades e as pessoas se parecem entre si em alguma medida, mas são radicalmente diferentes entre si naquilo que existe de mais profundo em sua identidade: a sua alma.

O que faz o Brasil é ser Brasil? A pergunta feita pelo antropólogo, Roberto da Matta sobre quais são as características que fazem com que o brasileiros enxerguem a si mesmos enquanto tais, ao mesmo tempo que são reconhecidos assim pelo mundo, também pode ser aplicada à cidade do Rio de Janeiro. Em que constitui a identidade do Rio de Janeiro? Como a cidade é vista pelos estrangeiros? Como são vistos os cariocas que moram no exterior?

O Diário do Rio conversou com a engenheira carioca, Ana Paula Kasznar, para falar um pouco sobre essas indagações. Ana Paula é engenheira civil com foco em sistemas urbanos, além de apaixonada por sustentabilidade. Atualmente, faz mestrado em Liderança e Engenharia Ambiental Global (GELP program), na Universidade de Tsinghua, em Pequim, na China.

Ana Paula Kasznar, que já morou na Inglaterra e na China, atualmente reside na França, onde trabalha com gestão ambiental e contabilidade de emissões de carbono na empresa ENGIE.

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Ana Paula Kasznar Enseada de Botafogo ‘O Rio de janeiro tem que se tornar uma cidade mais humana, mais igualitária’
Ana Paula Kasznar / Reprodução: Rede Social

Diário do RioCaetano Veloso, em uma de suas composições, disse: “De perto, ninguém é normal”. A mesma coisa também pode ser dita sobre uma cidade. Como você vê a cidade de Rio de Janeiro a partir de Paris, na França?

Ana Paula Kasznar – Para mim, o traço definidor da cidade é o verde. Apesar de você estar em uma cidade muito urbanizada é sempre possível entrar em contato com a natureza. Esse é o aspecto da cidade que eu mais gosto e do qual sinto mais falta, pois adoro fazer trilhas. Os franceses, por sua vez, gostam da cidade, a consideram muito bonita. Mas, para eles, o Rio é apenas uma cidade para passar férias dada a sua beleza natural.

Diário do Rio – Quais são os pontos de encontro ou afastamento entre as duas cidades e os seus habitantes?

Ana Paula Kasznar – Um ponto de encontro entre parisienses e cariocas é o gosto de estar entre os amigos. Em Paris existe a cultura do Café, onde você encontra os seus amigos para conversar. A cidade do Rio de Janeiro cultua o bar como local de encontro entre amigos e conhecidos. Como ponto de afastamento entre os dois povos, destaco a posição de reserva dos parisienses.

Franceses em Cafes ‘O Rio de janeiro tem que se tornar uma cidade mais humana, mais igualitária’
Os famosos Cafés franceses / Reprodução: Internet
Cariocas no Jobi ‘O Rio de janeiro tem que se tornar uma cidade mais humana, mais igualitária’
Ponto de encontro no Brasil: o bar / Reprodução: Internet

Em Paris, as pessoas são separadas em seus próprios grupos que, mesmo em eventos sociais, não interagem entre si. O carioca é o extremo oposto. O carioca é um povo que agrega. Se você vai a algum lugar e não conhece ninguém, as pessoas adotam uma postura amigável e receptiva com você.

Diário do Rio – Os franceses identificam algo na cidade do Rio que seja definidor da sua identidade? Algum traço, positivo ou negativo, que só o Rio de Janeiro possua?

Ana Paula Kasznar – Os parisienses associam o carnaval à cidade do Rio de Janeiro. Eles querem conhecer o carnaval festejado na cidade e que avaliam como sendo o melhor do Brasil. Os franceses também veem como traço de identidade carioca, a beleza das mulheres locais. Isso também se estende às mulheres brasileiras. Para eles, as cariocas são descoladas e interessantes. As brasileiras, por sua vez, são vistas como bonitas, curvilíneas e voluptuosas. Outro ponto que chama atenção dos parisienses são as praias do Rio, que juntamente com o carnaval, assumem o topo em seu imaginário social. Paris não tem praias, o que desperta nos parisienses um forte desejo de conhecer o litoral da cidade do Rio.

Diário do Rio – Como o estrangeiro vê o carioca residente no exterior? Ele é visto de uma forma positiva ou depreciativa? O fato de ser mulher interfere em alguma coisa?

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Ana Paula Kasznar / Arquivo pessoal

Ana Paula Kasznar – Os parisienses veem a si mesmos como mais cultos, mais inteligentes e mais bem preparados do que as pessoas provenientes de países em desenvolvimento, como o Brasil. Percebo isso no meu local de trabalho, onde várias vezes fui vista como “café com leite”, ou seja, abaixo do meu real valor profissional e cultural. Em vista disso tive que provar por diversas vezes que tenho valor, que tenho uma boa formação e sou tão boa ou melhor que muitos deles. Os parisienses têm a percepção de que o carioca é um povo simpático, festivo e acolhedor. Eles adoram a companhia dos cariocas nas festas, pois os consideram divertidos e bons dançarinos de funk e outros ritmos. Em compensação, no trabalho, existe uma visão depreciativa dos cariocas e dos brasileiros. Parte da minha graduação em engenharia foi feita em Paris. Na época, ninguém queria fazer trabalho de faculdade comigo. As pessoas me chamavam para um milhão de festas, mas ninguém queria fazer trabalho comigo. Na França, existe a ideia de que o carioca é ótimo para festa, mas é ruim para o trabalho. Quando você consegue ultrapassar essa barreira, no entanto, os parisienses são muito confiáveis e discretos.

Diário do Rio – Como os franceses veem o enfrentamento da pandemia no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro?

Ana Paula Kasznar – Recentemente, algumas pessoas vieram me perguntar sobre a aplicação da “vacina de vento” nos velhinhos do Rio de Janeiro. Queriam saber se isso era verdade, respondi que eram casos isolados. Os parisienses execram o presidente Jair Bolsonaro no que diz respeito ao combate à Covid-19. A imagem predominante é de que as coisas vão muito mal no Brasil, e de que o enfrentamento da pandemia é nulo. Na França, o Brasil chama muita atenção através das ações e falas do presidente Bolsonaro. Na empresa onde trabalho, a ENGIE, os meus colegas sempre me pedem esclarecimentos sobre a veracidade das declarações ou ações do presidente.

Diário do Rio – Você é engenheira Civil e faz mestrado em Engenharia Ambiental, na China. Você se interessa muito pelo conceito de cidades inteligentes. Como a cidade do Rio se enquadra em tal conceito?

Ana Paula Kasznar –  Existem várias dimensões para poder chamar uma metrópole de cidade inteligente, mas podemos destacar 3 delas: a tecnológica, a social e a governança. Na primeira, a cidade deve ter um arcabouço tecnológico bem estruturado e consistente que permita aos governos e aos cidadãos desempenharem as suas funções de forma transparente e otimizada. Na dimensão social, a cidade deve atrair e desenvolver pessoas para que tenham bom nível cultural e intelectual, proporcionar integração social e boa qualidade de vida aos seus habitantes, além de garantir o acesso aos diferentes sistemas urbanos, como iluminação pública, fornecimento de água e saneamento básico. A governança, a última dimensão, diz respeito à estrutura política da cidade, ou seja, como o governo se estrutura e dialoga com a sociedade. É muito importante, nessa dimensão, que haja transparência e divulgação de ideias e informações por partes dos poderes estabelecidos, de forma a engajar os cidadãos no exercício da vida pública. Cabe aos governos garantirem os meios adequados para que essa comunicação aconteça. Para isso, a inclusão digital é algo muito importante, pois temos milhares de pessoas na cidade do Rio que não têm acesso à internet. Quando analisamos a situação da cidade sob essas 3 perspectivas, vemos um desempenho de cortar o coração, especialmente na área social. O Rio perde talentos para São Paulo e Europa, uma vez que o contexto social da cidade é muito precário. Nos últimos anos, no entanto, temos visto uma melhora no desenvolvimento e uso de sistemas de informação na prestação de serviços à sociedade, mas a pessoa comum interage pouco ou nada com eles.  Na área digital, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, no Paraná, e outras cidades do Sul estão em vantagem quando comparadas ao restante do Brasil. Mas se compararmos o Rio com outras cidades mundiais, veremos que ele ficou para trás.

Centro de Operacoes Rio ‘O Rio de janeiro tem que se tornar uma cidade mais humana, mais igualitária’
Centro de Operações Rio (COR) / Divulgação: Prefeitura

O Centro de Operações Rio (COR) ganhou inúmeros prêmios quando foi inaugurado, em 2010, para dar suporte ao Jogos Olímpicos em 2016. Na época, ele era um modelo de centro de operações, pois usava tecnologia de ponta para monitorar a cidade. Mas o tempo passou, e o COR foi se tornando obsoleto. No final de 2017, estive em suas dependências, onde ouvi de funcionários que não havia investimentos suficientes e que a integração com segmentos dos governos era difícil e burocrática. O COR foi um ótimo instrumento de cidade inteligente em um época em que o Rio registrou inúmeras enchentes, uma vez que ele monitorava a cidade e mandava mensagens de alerta via sms a pessoas cadastradas em seu bando de dados. Temos aí, aplicação das 3 dimensões básicas de uma cidade inteligente em benefício da população.  

Diário do Rio – A cidade do Rio é extremante cosmopolita, mas é também uma cidade muito desigual na distribuição de recursos financeiros e urbanos. Como uma cidade assim pode se tornar uma cidade inteligente?

Ana Paula Kasznar – É preciso relativizar ideia de que o Rio é um cidade cosmopolita. No contexto brasileiro, o Rio é cosmopolita. Quando comparamos o Rio a Paris ou Pequim, na China, veremos que não é bem assim, pois nela não existem as inúmeras diferenças culturais encontradas nessas capitais. Em Pequim, as pessoas perguntavam se eu estranhava a vida na cidade, pois, segundo eles, o Rio era uma cidade pequena onde pouca coisa acontecia. Pequim é uma cidade muito mais vibrante, onde ocorrem 1 milhão de eventos sobre todos os assuntos possíveis. Por isso, há fortes discussões sobre como tornar a cidade mais inteligente para receber e otimizar o cotidiano de pessoas do mundo todo que ali residem e trabalham. No Rio, existem alguns polos de conhecimento, mas precisamos de mais. Temos uma distribuição de renda muito desigual, que precisa ser melhorada para que a população tenha acesso ao consumo de bens e serviços melhores. Enquanto não colocarmos um computador na casa de todo mundo, vai ficar complicado ter uma cidade conectada para fomentar o engajamento do cidadão na vida pública. O Rio de Janeiro tem que se tornar uma cidade mais humana, mais igualitária mesmo.

Diário do Rio – Você trabalha em Paris, na França. A sua saída do Rio de Janeiro foi um decisão ou imposição do mercado de trabalho local?

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Reprodução: Rede Social

Ana Paula Kasznar – No meu caso foi uma decisão. Eu trabalhava no Rio e pedi demissão para fazer mestrado na China, de onde voltei por causa do novo coronavírus. Eu não procurei emprego no Rio, pois não me vejo trabalhando no Brasil. Escolhi a França, onde já havia estudado, pois os trabalhadores têm melhores condições de vida e de trabalho. Além do mais, aqui tenho mais oportunidades na minha área do que no Rio de Janeiro. Atualmente, os debates na França e em toda a Europa são sobre neutralidade de carbono, sobre como melhorar nossas cidades, sobre como usar a internet das coisas na revolução industrial 4.0, entre outros assuntos. Além disso, havia também as melhores condições salariais, influenciadas pela desvalorização do Real.

Diário do Rio – Na sua avalição, quais são as perspectivas da cidade do Rio de Janeiro em termos culturais e socioeconômicos em um futuro próximo?

Ana Paula Kasznar – Em um futuro próximo, a nossa maior prioridade deve ser controlar a pandemia de Covid-19, para evitar mais mortes e permitir a retomada da economia. O governo terá um papel crucial nessa retomada, através da implementação de programas sociais, e também de programas ligados à área ambiental e de cidades inteligentes. Qualquer pacote de medidas que o governo decida desenvolver terá que conter uma ideia de transformação, uma concepção de economia voltada para um mundo mais sustentável, mais verde. Essa mudança de postura vai impactar de forma muito positiva a saúde da população e as condições do meio ambiente. O retorno virá no médio e longo prazo. As pessoas pensam que ter uma economia sustentável é caro e não dá retorno. Devemos pensar o contrário, inclusive na cidade do Rio de Janeiro, que reúne muitas condições para ser uma cidade desenvolvida e sustentável.

Entardecer no Rio Ana Paula Kasznar 1 ‘O Rio de janeiro tem que se tornar uma cidade mais humana, mais igualitária’
Foto: Ana Paula Kasznar

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