O USO DE “GOURMET” E TERMOS AFINS: MAIS UMA CONCESSÃO ESTATAL

O uso, em embalagens e rótulos de produtos, de termos como "gourmet", "especiale" e "premium" só será admitido, se acompanhado de texto explicativo

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Imagem meramente ilustrativa / Foto: Tomás Rangel
  • *Por Kátia Magalhães

Se, no encerramento da folia, você estiver ávido por assar aquela picanha premium da marca de sua preferência, acompanhada de um risoto de trufas gourmet, encerrando tudo com um bom praliné royal, receio que o novo governo brasileiro possa frustrar seus desejos gastronômicos. Na forma do Ofício-Circular no. 2/2023, expedido pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAP), o uso, em embalagens e rótulos de produtos, de termos como “gourmet“, “royale“, “especiale“, “ouro“, “premium“, “reserva” e análogos só será admitido, se acompanhado de texto explicativo sobre os critérios empregados na diferenciação da qualidade do item. Seria a medida um imperativo para a proteção ao consumidor, ou só mesmo mais um abuso dentre tantos?

Braço do Poder Executivo, cada Ministério deve gerir os assuntos pertinentes à sua pasta, podendo, apenas em caráter excepcional, editar nomas que reproduzam, ou até especifiquem a legislação em vigor. Porém, não cabe a um Ministro a prerrogativa de criar para as pessoas, físicas ou jurídicas, qualquer obrigação além daquelas previstas em leis aprovadas no Parlamento. Se cair nessa tentação, incorrerá em extrapolação de suas atribuições, como precisamente observado no caso em análise.

A pretexto de complementar o artigo 446 da Portaria 9013/2017, que dispõe sobre o dever do fabricante de prestar, no corpo do item, informações sobre a “natureza, composição, rendimento, procedência, tipo, qualidade, quantidade, validade, características nutritivas”, pretende o MAP compelir o produtor a especificar quais seriam os traços capazes de justificar a qualificação de um alimento como “gourmet”. Ao expedir tal determinação, no entanto, o gestor público se equivoca no embaralhar de conceitos, revelando desconhecimento sobre o que seriam, de um lado, os aspectos qualitativos inerentes a um produto, e, do outro, os elementos promocionais e imagéticos ao redor deste.

Qualidade costuma ser vista, grosso modo, como uma variável precisa e mensurável, e como adequação ao uso pretendido ou às normas e especificações aplicáveis ao gênero em questão. Nesse sentido, atributo bastante objetivo e passível de aferição por metodologias nutricionais estabelecidas, a presença de substâncias, como glúten ou lactose, seu percentual em composições alimentícias, assim como a ausência de álcool em bebidas habitualmente etílicas (como a cerveja), ou uma dosagem alcoólica excessiva para os padrões de certos itens são características diretamente relacionadas à qualidade, que têm de ser reportadas aos compradores, com clareza e transparência, inclusive por força do nosso Código de Defesa do Consumidor (CDC). Ora, eventual omissão ou dubiedade em torno de aspectos como os mencionados acima pode induzir o comprador a opções errôneas, desviadas da sua intenção original, o que prejudica não só a lisura dos negócios, como até mesmo a saúde dos consumidores.

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Seara muito diversa diz respeito a todo um conjunto de fatores intangíveis, dos quais os fabricantes lançam mão para gerarem, no íntimo de cada membro de seu público-alvo, o desejo de comprar certo produto. Esse terreno, onde impera a subjetividade, engloba a escolha dos veículos de divulgação, a linguagem publicitária, o trade dress (ou identidade visual), e as marcas, sinais destinados à distinção de bens e serviços daqueles oferecidos pelos concorrentes. Tais elementos desprovidos de existência corpórea são ferramentas para a criação lícita e legítima, na mente do consumidor, de uma fantasia que o leve a enxergar na aquisição do item em questão a perspectiva de uma experiência prazenteira. 

É nesse universo imaterial que se encontram os termos sob a mira do MAP, figurando como parcela nominativa de várias marcas empregadas na indústria alimentícia. E, enquanto sinais marcários que são, não podem, por definição, ser descritivos ou comumente usados para a designação de características próprias aos itens por eles identificados. Simplificando, basta ter em mente que uma palavra como “telefone” jamais poderia ser usada como marca para assinalar “aparelhos destinados à transmissão de sons”.

Portanto, não resta dúvida de que termos como “gourmet” e “premium” de fato integram marcas de alimentos, até porque, reitere-se à exaustão, não possuem atrelamento semântico à natureza dos produtos por elas identificados. Afinal, o que significam “gourmet”, “premium”, “ouro” e outras palavras recém-alvejadas pelo Ministério senão meras alusões fantasiosas com vistas à hipervalorização dos itens, que, em virtude de alguma receita especial, apresentariam um paladar mais refinado, sendo, via de consequência, mais raros e mais caros?

Nesse particular, o emprego dos referidos termos poderia até ser comparado àquilo que a doutrina jurídica conhece como dolo tolerável (dolus bonus), ou seja, o mero exagero quanto aos atributos dos produtos, sendo, por isso mesmo, incapaz de motivar a anulação da compra. Em nossa rotina, não são poucas as ocasiões em que deparamos com peças publicitárias de veículos, itens comestíveis, de vestuário ou perfumaria, todas ambientadas em cenários paradisíacos aos quais dificilmente teremos acesso mediante a simples aquisição do produto anunciado. Nem por isso iremos ao tribunal buscar ressarcimento pelo negócio, até porque nossa inteligência mediana é capaz de compreender a natureza meramente ilustrativa das imagens, e a tolerar um simples truque publicitário de sedução.

Da mesma forma, os alimentos “gourmet” visados pelo MAP nada mais são que fruto de estratégias de marketing dos fabricantes, que resolveram criar linhas mais sofisticadas de produtos, sem modificar sua composição nutricional, presente de longa data nos rótulos e embalagens. Assim, a recente medida ministerial, ensejadora de uma obrigação não prevista na legislação atual, acarretará custos imprevistos e desnecessários aos produtores, que, por óbvio, os repassarão à clientela. Exemplo de como o Estado, ao intervir fora de seu restrito âmbito de atuação, só vem perturbar e encarecer a atividade produtiva, atuando como um agente de desestímulo aos negócios.

Pensemos, ainda, em toda a burocracia engendrada pela interpretação das minudências do tal Ofício, o que poderá implicar na contratação de advogados e despachantes, com ônus adicionais para as empresas. Isso sem falar no consectário evidente de qualquer processo burocratizante, que é o incremento do ambiente de corrupção, onde seres humanos acossados por exigências estatais descabidas não tardam em cogitar de estratégias “heterodoxas” para a eliminação dos empecilhos, inclusive mediante o pagamento de bons pixulecos a funcionários prontos a mitigarem os rigores das normas. Afinal, somos ou não o país cujas autoridades seguem firmes em seu velho lema de “criar dificuldades para vender facilidades”?   

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