Padre Valtemario: Da Capadócia ao Rio

Pe. Valtemario S. Frazão Jr., colunista do DIÁRIO DO RIO, fala sobre São Jorge

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Reprodução: Internet

Nasceu na Capadócia, radicou-se na Palestina, ganhou notoriedade em Nicomédia, martirizado, foi sepultado em Israel, sua fama atravessou o mar, trazida pelos portugueses, e conquistou o coração dos cariocas. Essa poderia ser síntese de um enredo das muitas escolas de samba do Rio, que anualmente reverenciam o Santo Guerreiro de algum modo em suas alegorias e sambas na avenida, ou mesmo em suas quadras, tomando-o como padroeiro. Mas não é! Trata-se, sobretudo, dos antecedentes remotos de um dos fenômenos mais importantes para a história religiosa da Cidade Maravilhosa.

É bem verdade que a biografia de São Jorge da Capadócia é envolta de muitas lendas, o que sempre ocorre com santos muito populares. E quando se trata de um santo dos primeiros séculos do cristianismo, cujos registros são raros, distinguir o que é verídico de lenda, ou para usar uma linguagem nossa, distinguir o que é fato de fake, torna-se extremamente difícil, mas todas estas histórias contadas e transmitidas de geração em geração expressam a forte influência de São Jorge na história da piedade popular cristã.

O que podemos afirmar de seguro é que São Jorge nasceu na Capadócia, na atual Turquia, no século III, filho de pais cristãos de uma família influente romana ou grega, mas seguramente abastada, o que lhe possibilitou uma educação esmerada. Muito cedo ingressou na vida militar, vindo a rapidamente ascender na carreira, de modo a receber o título de conde e ser feito encarregado da guarda pessoal do imperador Diocleciano (284-305) em Nicomédia. Conta-se que, após a morte de sua mãe, já viúva, São Jorge doara toda a sua herança aos pobres, e este foi um eloquente testemunho cristão para aqueles que não conheciam a sua fé. Porém, maior testemunho ainda estava por vir com o seu martírio.

Quando Diocleciano intensificou a perseguição aos cristãos em 303, ordenou a prisão de todos os cristãos que militavam nas fileiras de suas tropas, enquanto os demais deveriam oferecer sacrifícios aos deuses romanos. São Jorge não só não se submeteu a esta ordem, mas ainda foi ao Imperador protestar por tal tirania e declarar-se cristão. Diocleciano tentou demovê-lo de sua fé oferecendo-lhe muitas riquezas e ganhos na carreira militar, já que o tinha como tribuno competente. Mas como todas as investidas foram inúteis, o mandatário romano mandou tortura-lo, até que renunciasse à fé em Cristo e adorasse os deuses pagãos. Como Jorge a tudo isso resistia dando provas de sua fidelidade ao Senhor, Diocleciano mandou degolá-lo no dia 23 de abril de 303, sendo sepultado na cidade de Lida, em Israel. Mas o seu sangue derramado fecundou a história do cristianismo e muitos corações, de modo que a partir daí foram muitas as almas que se converteram a Cristo, a começar pela mulher de Diocleciano e muitos de seus soldados.

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O eloquentíssimo testemunho de fé de São Jorge fê-lo conquistar notoriedade tanto no ocidente quanto no oriente. Católicos, ortodoxos e anglicanos prestam-lhe culto de veneração como um dos santos mais populares do cristianismo, sendo padroeiro de países, cidades, corporações militares, etc.

No sincretismo religioso brasileiro, São Jorge também tem muita relevância, sendo associado a entidades de religiões de matriz africana, como Ogum no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Pernambuco, enquanto na Bahia é associado a Oxóssi. Talvez seja por causa dessa associação que a Igreja Católica no Brasil durante muito tempo evitou promover a devoção a São Jorge, a fim de se evitar confusão de entendimento a respeito da realidade do Santo Guerreiro, já tão envolto em lendas e fantasias; haja vista a quantidade de igrejas no Rio dedicadas a São Jorge. São poucas, e a mais antiga delas, a do Centro da cidade, nem o tem por padroeiro principal, que é São Gonçalo Garcia, santo pouco popular entre nós. Aí São Jorge aparece como padroeiro secundário. De igual modo, são poucas as igrejas de nossa cidade que possuem altares ou nichos dedicados a São Jorge. Os nichos dedicados ao Santo Guerreiro estão nas ruas e praças do subúrbio carioca, aí colocados por iniciativa popular de pessoas devotas, seja do São Jorge católico, seja do Ogum da Umbanda.

Mas a postura da Igreja tem mudado frente à devoção a São Jorge, pelo menos a postura da Igreja Católica no Rio, sobretudo depois que o dia 23 de abril se tornou feriado estadual e São Jorge padroeiro do estado do Rio de Janeiro, ao lado de São Sebastião, por iniciativa do poder público. Hoje são muitas as paróquias que promovem missas devocionais, procissões e até feijoadas no dia de São Jorge, e muitos fiéis se trajam de vermelho, para homenagear o santo mártir em recordação do seu sangue derramado em fidelidade a Cristo. Até o próprio cardeal do Rio faz questão de participar dos festejos nas duas principais igrejas dedicadas a São Jorge (Centro e Quintino) e ainda proclamou este ano de 2023 como um ano dedicado a São Jorge, tornando o ambiente de devoção ao Santo Guerreiro mais propício à missão evangelizadora e catequética, ou seja, de “São Jorge a Jesus Cristo”, partindo da devoção popular ao Santo Guerreiro, dos seus atos heroicos e virtudes evangélicas, dar o salto qualitativo da fé em Jesus Cristo.

É a atual sensibilidade pastoral da arquidiocese do Rio, que enfim se rende à devoção do povo carioca a São Jorge e aproveita disso para levar o evangelho àqueles que, apesar de nutrirem grande apreço pelo Santo Guerreiro, estão distantes da Igreja e de suas celebrações.

Nestes tempos de tantas divisões, polarizações e marcações de espaço, a devoção a São Jorge pode ser de grande utilidade em vista da unidade de nosso povo, pois ele chega ao coração de todos como o santo que combate contra o mal. E todos nós temos um mesmo inimigo: a divisão, a miséria, o desemprego, a doença, a violência… males que atingem a todos, independentemente de sexo, cor, religião ou ideologia.

E no Rio o problema crônico da violência urbana faz com que a devoção a São Jorge tenha expressões muito peculiares na cidade maravilhosa. O dragão, tão presente na sua iconografia tradicional, é símbolo do demônio e da idolatria destruídos com as armas da fé cristã. Mas aqui no Rio também simboliza tudo o que é mal e toda sorte de inimigos que tentam contra a vida e integridade física das pessoas, eles devem ser combatidos também com as armas da fé. Lembro que, quando era adolescente, minha mãe me ensinava a rezar a oração a São Jorge todos os dias antes de sair de casa para ir ao colégio, pois cotidianamente os noticiários já traziam relatos de assaltos, sequestros, balas perdidas, etc.

Fato é que nesta cidade ninguém se sente suficientemente seguro. E neste contexto de altos índices de violência urbana, quando o poder público se mostra incompetente para resolver o problema de forma satisfatória, só nos resta recorrer aos céus, donde nos vem a verdadeira salvação.

Que São Jorge interceda por todo o povo carioca junto ao Senhor Jesus e nos defenda de todo o mal com as armas da fé e das virtudes cristãs.

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