Padre Valtemario: o espírito natalino carioca

Todos os anos, por essa época, um clima diferente invade a cidade do Rio de Janeiro. Há um clima de paz, de reconciliação, solidariedade e real fraternidade

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O Padre Valtemário Frazão é pároco da Basílica de Nossa Senhora de Lourdes, e escreve sobre cristianismo no jornal da Arquidiocese do Rio, onde este artigo foi originalmente publicado

Todos os anos, por essa época, um clima diferente invade a cidade do Rio de Janeiro. É o chamado espírito natalino. Por mais dessacralizado e comercial que seja o ambiente, brilha na alma do carioca um contentamento diferenciado. Há um clima de paz, de reconciliação, solidariedade e eu diria mesmo de real fraternidade. São valores que nesta época do ano despontam de forma extraordinária a nos fazer esquecer, nem que seja por alguns dias, que apesar de vivermos em uma das mais belas metrópoles do mundo, somos também das mais violentas cidades, com alto índice de desemprego, milhares de pessoas morando em áreas de risco ou mesmo sem teto, saúde, educação, e transporte precários, dentre tantos outros gravíssimos problemas sociais que diariamente açoitam os cariocas.

Este espírito natalino não brota das várias cidades do Papai Noel montadas nos shoppings, nem das vitrines das lojas especialmente decoradas nesta época do ano; nem mesmo a árvore de Natal da Lagoa, que já não temos mais, seria capaz de despertar sentimentos tão elevados no coração dos cariocas marcados por tantos problemas em uma cidade dita Maravilhosa, mas extremamente desigual e cheia contrastes.  Todavia, o que, então, desperta-nos o tão falado espírito natalino?

Este espírito brota do presépio. Ali, num estábulo, lugar de guarda e repouso de animais, onde a Sagrada Família de Nazaré foi também pobre, sem teto e contou apenas com o espírito solidário de quem podia acolhê-la, assim como ocorre com milhares de famílias cariocas que vivem nas favelas da cidade ou mesmo nas ruas debaixo de marquises e viadutos.

Ali não há berço nem enxoval para o Menino Deus recém-nascido. Por isso, fora envolvido em faixas por sua mãe e reclinado numa manjedoura, recipiente onde se colocava trigo dado em alimento aos animais; uma imagem extremamente simbólica, pois Jesus, Deus feito homem, fez-se trigo para que morto se fizesse pão eucarístico, verdadeiro alimento para esta vida e para a outra (“Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, caído na terra, não morre, fica só; se morrer, produz muito fruto.” Cf. Jo 12, 24).

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Ali não há lâmpadas, ceia farta nem riqueza material. Jesus é a própria luz que vem dissipar as trevas do erro, Ele que é o grande alimento para a vida eterna e a riqueza dos corações verdadeiramente sábios.

Ali o Menino-Deus é adorado por seus pais, pelos pastores, pelos reis magos e até pelos anjos do céu, que descem para anunciar tão grande mistério de amor de um Deus forte e eterno, que se faz menino frágil e mortal.

É unicamente a Luz que brota no presépio, a irradiar pelo mundo a fora e preencher até os corações mais calejados pelos açoites da vida, capaz de despertar o dito espírito natalino. Aquela santa noite mudou o curso da história humana e a cada ano sua celebração é oportunidade de renovação e mudanças.

Maravilhoso mesmo é ver como o carioca é solidário nesta época do ano, mais do que o de costume e do que em qualquer outra festividade. Sentimos isto em nossas paróquias com as doações de alimentos, vestuário, brinquedos e tantas outras campanhas solidárias que nossos padres lideram todos os anos com muito êxito, ainda que não haja divulgação por parte da grande mídia, como ocorre com as ONGs mais famosas. Não obstante, sem dúvida alguma, a Igreja Católica faz muito mais pelos pobres da cidade com sua enorme capilaridade através de paróquias, colégios, hospitais, capelas, irmandades, grupos de pastorais e de espiritualidade. Mas só há real sucesso em tantas iniciativas, mesmo que descentralizadas, porque são desprovidas de qualquer interesse político ou financeiro; e porque o coração do carioca é de fato extraordinariamente caridoso e generoso.

Lembro-me que certa vez atendi no confessionário uma senhora muito pobre, analfabeta, diarista e moradora do Morro do Pau da Bandeira, após receber a absolvição sacramental, dei-lhe por penitência fazer uma boa ação. Ela disse-me que já fazia boa ação, não por penitência, mas por caridade, pois uma vez por semana fazia 12 quentinhas com arroz, feijão, salsicha ou ovos cozidos, colocava num carrinho e as entregava aos primeiros 12 mendigos que encontrasse pela rua. Isto me fez refletir sobre a capacidade que o carioca tem de ser caridoso, ainda que ele mesmo precise de caridade.

Entretanto, para além da pronta disposição à adesão em ações sociais solidárias, o espírito natalino invade o coração dos cariocas e se manifesta também através de gestos simples, discretos e corriqueiros que vão desde um “Feliz Natal” dito com sinceridade em meio a um sorriso nas ruas, no comércio, entre amigos e vizinhos, até as casas e varandas dos apartamentos enfeitadas com guirlandas, pisca-piscas, árvores de Natal e presépios, ou às vezes apenas uma pequena imagem do Menino Jesus em lugar de destaque na sala de estar.

Este é um tempo de paz, alegria e reconciliação, em que os corações buscam se aproximar, nem que seja através de uma mensagem de celular, daqueles que por algum motivo se distanciaram. Mas é, sobretudo, um tempo de profunda religiosidade, pois o motivo de tantas comemorações e sentimentos dos mais elevados é genuinamente religioso. É Jesus a causa de nossa alegria e caridade, o Emanuel, o Deus Conosco, o Menino que nos foi dado não somente para mudar o curso da história da humanidade, mas para mudar a história pessoal de cada ser humano, que a Ele deve assemelhar-se porque Ele, o Ser Divino, fez-se ser humano, a fim de que n’Ele cada ser humano recuperasse a imagem e semelhança divinas perdidas por causa do pecado. É por causa d’Ele que nesta época do ano, como outrora os pastores e os reis magos na gruta de Belém, as pessoas desejam encontrar-se com Deus e, por isso mesmo, acorrem às nossas igrejas a fim de fazerem ao menos uma prece de agradecimento ou de súplica. É por causa d’Ele que na noite de Natal as famílias devem se reunir em mais forte unidade e fazerem uma prece como verdadeira igreja doméstica em que se cresce na fé, na esperança e na caridade.

É Natal! Que a Luz a brotar do presépio e iluminar o mundo, irradie sobre todos nós, invada nossos corações e acenda nossas lâmpadas a fim de que brilhemos em verdadeira bondade para dissipar as trevas da divisão, do egoísmo e da ganância que a tantos oprimem.

Pe. Valtemario S. Frazão Jr.

Pároco da Basílica N.S. de Lourdes

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