Pai: Sobrenome revolta

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É de se espantar que a primeira peça de um dramaturgo já se torne um clássico tão significativo no cenário teatral, a ponto de se considerar, a partir dela, o divisor de águas da arte cênica brasileira. O jovem Gianfrancesco Guarnieri(19342006), então com 24 anos de idade, debutou, como autor, com nada mais nada menos do que a peça Eles não usam blacktie, em 1958. Gianfrancesco, nascido em Milão, na Itália, era filho de pais engajados na luta contra o fascismo. Imigrou para o Brasil, ainda bebê; na juventude integrou a liderança do movimento estudantil em São Paulo até esbarrar com o teatro do grande Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha.

Foi no Teatro Arena, em meados dos anos 50, que Gianfrancesco pôde, com a ajuda de José Renato, montar “Eles não usam black-tie”, contando com um elenco de peso, em que figuravam atores novatos como o próprio Gianfrancesco, Lélia Abramo, Milton Gonçalves e Flavio Migliaccio. Apesar de ser estreante, a peça logrou um êxito inesperado, arrancando elogios da crítica, do público e de Jânio Quadros, que era governador de São Paulo na época.

No entanto, “Eles não usam black-tie” tomou o espaço da linguagem cinematográfica quando, em 1981, o consagrado diretor Leon Hirszman decidiu lançar o filme. Ao lado de Gianfrancesco, Leon escreveu o roteiro, realizando a laboriosa tarefa de adaptar a peça para a tela. Com fotografia de Lauro Escorel e figurino de Yurika Yamasaki, o filme tinge o drama de Gianfrancesco com uma paleta opaca e terrosa, deixando à vista o estilo neorrealista presente na direção de Hirszman; e fazendo da película uma vivência colorida das propostas do Cinema Novo. O filme, premiadíssimo, honrou o nome do Brasil, no cinema internacional, conquistando o Leão de Ouro no Festival de Veneza, a mesma cidade em que nasceu o pai de Gianfrancesco.

 Embora sobrem elementos suficientes para dissertarmos longamente sobre o assunto, não traçaremos aqui os paralelos ou as dissonâncias presentes na peça e no filme. De minha parte, enquanto texto dramático, prefiro a peça, por ser mais abrangente e mais diversificada nos conflitos; no entanto, o filme é impressionante pela simplicidade fotográfica, cenográfica e cênica e pela simplificação do drama, já que é essa a missão essencial do cinema: duplicar a simplificação ao resumir um drama no espaço reduzido da tela. O que pretendo é outra coisa.

Gianfrancesco escreveu um drama estrondoso porque trouxe para a cena o Brasil que o Brasil não enxergava ou que escarnecia: o Brasil brejeiro, favelado, operário. No teatro ainda não havíamos visto nenhuma peça que tivesse a ousadia e o desprendimento de encenar a vida daqueles que “não usam black-tie”. Em 1958, o teatro brasileiro já não era mais o mesmo do início do século, carregado de estrangeirismo dos textos de autores clássicos; a pesquisa cênica encabeçada por Procópio Ferreira, depois desenvolvida com maestria por Nelson Rodrigues, havia encontrado uma prosódia singular que realçava o caráter popular do drama.

 “Eles não usam black-tie” é o exemplo marcante dessa experiência que criou, qual Lima Barreto, uma linguagem ordinária que fidelizava a sociedade brasileira da forma como se constituía naquela época. Gianfrancesco explorou o problema da luta operária em um momento de amplo crescimento cultural e econômico no Brasil, como forma de expor, sem pudores, a vida de um grupo social que, em contrapartida, estava alheio ao otimismo kubitschekiano. Não usar o blacktie representava recusar o privilégio burguês daqueles que, na usura, abocanham, exploram e “contrariam a lei numa porção de coisas” arrochando salários e reprimindo greves.

O conflito principal de “Eles não usam black-tie” é o desacordo entre Otávio e Tião. Pai e filho polarizam opiniões políticas a respeito do direito trabalhista, sublinhando a personalidade de cada um. Otávio – interpretado belissimamente no cinema por Gianfrancesco – é o pai grevista, aferrado ao credo militante de que, para melhorar de vida, “só com muita luta”. A luta se exprime não como discurso, mas como prática, no ato de resistência de quem não é “menino-família”, “pelego no duro”, entreguista que, às custas de quem “aguentou tropa de choque”, “tá bem na fábrica”. Otávio é a imagem viva do operário revoltado de uma fábrica metalúrgica. Já Tião, que trabalha na mesma fábrica, figura como o operário resignado que aceita o inaceitável.

Tião é antítese do pai, como também é dos outros personagens da peça/filme. Mora com o pai Otávio, a mãe Romana e o irmão Chiquinho; noivo de Maria e amigo de Jesuíno – todos moradores de uma favela no Rio de Janeiro. Mas, Tião é, na opinião do pai, “rapaz de cidade”, “feito pramorá em apartamento”. A angústia de Tião é morar “em casa errada”, já que, tendo sido criado pelos padrinhos, na zona sul carioca, rejeita o ambiente: “ele não quer melhorar” através da luta, porque acredita na eficiência do individualismo pequeno burguês, na ética descomprometida defensora da máxima de “cada um resolve seus galhos como pode”.

Conduzido pelo plano pelego de Jesuíno, sob a condição de “ficar do lado deles”, vigiando “o movimento do pessoá”, dedurando os grevistas mais agitadores, Tião sonha em vestir o blacktie. Quer ser feliz, com Maria, longe da pobreza, pois“vida de morro estraga qualquer amor” ou “não acho favela bonita”. Maria, no entanto, sabe que a favela não é bonita, mas crê que “a gente faz” ela ficar; crê que o amor e a comunhão dos pobres dignifiquem a vida.  Jesuíno é a tentação imoral do capitalismo,afastando Tião daquela estrutura sofrível; ele incita a lei do mais baixo individualismo levando Tião a proclamar que “ quem quiser que se arrebente de fazer greve a vida toda por causa de mixaria”; que “nesse mundo o negócio é dinheiro”.

Otávio é o pai cujo sobrenome é revolta; preso por causa do engajamento operário, conhece na pele a repressão; sua revolta é o que Albert Camus chamou de direito de dizer não ao que nos rebaixa à existência absurda. A revolta é o grito humano que não abaixa a cabeça para as adversidades. Otávio representa esse espírito; e sua paternidade é, a rigor, calcada na educação política. Se Otávio não é o modelo cristão-burguês do pai que afaga os filhos com o abraço de urso, protegendo e provendo a cria para afastá-la do perigo iminente; se ele não omite a falha dos filhos, cerrando olhos para a crítica da conduta, ele os educa para a revolta, colocando-os de frente para a injustiça do mundo. E tal atitude não é de somenos; ela significa tudo. Oblacktie não tem caimento próprio para homens que não suportam se humilhar.

A revolta recusa se deixar seduzir pelo lustro do blacktie. Não se usa tal traje por gosto, mas por dignidade moral. Otávio jamais renuncia o que é direito humano, enquanto o filho simplesmente entrega os pontos: “greve é defesa de um direito, mas nós não quéusá desse direito e acabado”. Até o momento em que Tião afirma seu individualismo e fura a greve, na cena mais dramática da obra de Gianfrancesco, enfurecendo o pai e decepcionando Maria. Otávio vê o filho ser engolido pelo medo de perder o emprego ou de ser preso por “mixaria”, por algo que “não dá futuro”, e por isso encara o filho como um traidor, um inimigo íntimo.

No final, Otávio se posiciona duramente, sacrificando a família, ao expulsar Tião de casa.Situa-se aí entre o amor ao filho e a revolta. O pai não é o consanguíneo, mas o educador político que repugna que os filhos se acovardem “por convicção”; um filho é alguém que respira o mesmo ar de quem lhe inspira confiança; a paternidade é ato co-respiratório ou não é; pulsacom o filho ou se esquiva. Otávio vê em Tião a esquiva, a desfiliação; logo, se não há respiração em conjunto, se não há a mesma indignação com a vida, a mesma paixão, não há família possível.

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