Definitivamente o Rio não combina com o frio. Na noite passada, pensei ainda mais o quanto sou privilegiado. Pensei nessa crônica deitado e coberto, me tremendo. Antes, havia passeado com a cachorra Baunilha. Já dei esse passeio cheio de preguiça. Reuni forças para ver a bicha feliz. Coloquei um protetor de cabeça que serve como cachecol no pescoço, uma touca branca, blusa de manga comprida e casaco, mais calça esportiva e bota.
Adentrei o parcão e a cadela parecia não se importar com o clima. A doce Baunilha mantinha sua simpatia tradicional. Dei boa noite para as pessoas que lá estavam, fui em cada uma. Visava depois encontrar um canto e ficar bem quieto enquanto Baunilha gastaria sua energia infinita. Sentei na ponta de um dos bancos de concreto. Lembrei de que outro dia vi um cão subir naquele mesmo banco e fazer xixi bem no meio dele. Minha esperança era que isso não tinha acontecido no canto que escolhi. Após alguns minutos, uma mulher entrou com um cão malhado, meio marrom, meio branco. Colocou um saco na outra ponta do banco em que eu estava e sentou em cima. Logo dei boa noite e comentei sobre sua boa ideia do saco para forrar. Contei a história do mijão territorialista. Ela sorriu orgulhosa da própria sagacidade.
O cão da mulher, Jobi, rapidamente se engraçou com Baunilha. Rolaram no chão, correram, brincaram de briguinha, se mordiam carinhosamente. Quando cansavam deitavam costas com costas, até recomeçarem a brincadeira. Ali valeu sair de casa, fiquei feliz pela minha companheira canina, afinal, naquele dia frio de noite carioca, lá estava ela fazendo tão bela amizade. Apesar de que às vezes parecia ter um olhar de paixão. Não fiquei com ciúmes, quero a canina feliz, busco ser um bom tutor.
O banho quente de Ricardo Darín
Após acompanharmos aquela conexão, a mulher levou seu cão embora e também aproveitei para seguir meu rumo. Ao chegar em casa, minha garganta dava sinais de reclamação do ar gélido. Resolvi fazer um chá. Três dentes de alho cortados ao meio, suco de limão e gengibre. Enquanto a magia acontecia, fui tomar banho quente. Que alegria, meu Deus! Poder tomar banho quente no frio. Veio a minha mente uma entrevista do grande ator argentino Ricardo Darín, onde lhe perguntaram sobre o convite de Hollywood para atuar. Ele negou. O entrevistador lhe perguntou sobre o dinheiro que Ricardo poderia ter ganhado. “Para que? Para que serve?”, perguntou Darín em retorno. “Para viver melhor”, disse o entrevistador. Ricardo Darín não titubeou e mandou: “Melhor do que eu já vivo? Posso tomar dois banhos quentes por dia”.
Essa foi minha felicidadade também. Agradeci. Em seguida do banho, coloquei calça de moletom, meia, camisa, colete, e a touca branca de antes. Tomei o chá e sentei para escrever. Depois, meditei e deitei. Mesmo coberto e com várias camadas de roupas, não conseguia dormir. O frio continuava a me incomodar. Pensei naqueles que estavam nas ruas naquele mesmo momento. Fiz uma oração por eles e pela minha saúde. Puxei a touca branca para tampar meus olhos e veio uma vontade de fazer xixi, junto com uma fome. O clima frio tem isso, dá mais vontade de fazer xixi, né? Levantei e fiz um bem prazeroso, o líquido quente que saía de mim parecia levar calor a todo o gélido banheiro. Peguei mais um cobertor, coloquei outra blusa com capuz, fui até a cozinha e comi uma banana. Outra dose de aconchego e felicidade para este privilegiado. Como é possível dormir com fome e frio? Quantos sentem isso diariamente em proporções tão cruéis e assustadoras? Respirei fundo.
Retornei a presença para meu mundo de privilégios. Perdoem-me aqueles que gostam do frio e usam do argumento que “é bom para dormir”. E lá quero saber disso? Quero é acordar bem, despertar sob um sol gostoso em minha face, de camiseta, bermuda e chinelo. Morei por alguns meses em lugares frios, logicamente, não deu certo. Além disso, uma das piores coisas desse clima são as dores que vem junto. Lotadas de memórias. Dói aquele tornozelo que você torceu quando era criança, o ombro que machucou há anos, e as costas, ah, como doem as costas.
Por via das dúvidas, para facilitar o sono, engoli um comprimido de passiflora. Torcendo para o frio passar fora, logo. Porém, lembrei que o inverno ainda estava para começar.
Ótimas reflexões. Parabéns! Confesso que sou daqueles que gostam de frio, mas entendo perfeitamente quem não gosta. ???
As interrogações foram bride do teclado, que tem vontade própria.
Excelente crônica do Álvaro que conheci na fundação Satya Saí. É verdade o Rio faz frio muita gente não sabe disso. Pensa que aqui a temperatura normal e 40° . O frio do Rio pode surpreender os incautos principalmente se tiver a beira mar ou no Alto da Boa Vista. Esse ano está surpreendendo um mês antes do inverno e já estou puxando um cobertor e dormindo de casaco. Parabéns Álvaro pela linda crônica carioca. Dessa maravilhosa cidade!