Não sei se sou preto ou branco. O que é ser moreno? Mulato é uma palavra que cai a cada dia mais em desuso porque teria origem em mula. Mulato claro já me chamaram, preto claro, branco.
Dependia também da quantidade de sol. Uma vez, estava de chapéu, e uma mulher, em dúvida sobre minha cor, falou: “tem que ver o cabelo dele”.
A princípio, na época da minha infância, morava em Madureira. Na pré-adolescência, em dado momento fui viver na Tijuca. Final dos anos 90. No bairro de Madureira eu era só mais um, porém, na Tijuca, meu cabelo crespo e enrolado era alvo de bullying. Chamavam de bombril. Ou diziam continuamente “cabelo ruim, raspa”. Tinha personalidade forte então mantinha o cabelo enrolado apesar da encheção de saco diária. Aguentei alguns anos. Um dia ainda, em frente ao espelho, aqueles fios não queriam descer, teimavam em enrolar; chorei. Certa manhã nublada, cansado, desisti; e raspei o cabelo. Alguns chegaram a dizer “finalmente” quando cheguei na sala de aula aquele dia. Era como se comemorassem uma vitória. A vitória da opressão.
Somente muito tempo depois, no segundo ano do ensino médio que decidi deixar crescer novamente.
Era um outro contexto. O colégio em que estudava, a Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch, no bairro de São Cristóvão, parecia atrair muitos que buscavam fazer a diferença e possuía alunos de todo o Estado do Rio de Janeiro, das mais distintas classes e estilos. Tinha cursos gratuitos de comunicação e audiovisual. Finalmente, sim, finalmente, pude deixar meu cabelo crespo crescer, assim como muitos outros fizeram na mesma época. Depois, fiz tranças rastafari. Que orgulho. Era como abraçar uma ancestralidade e buscar a própria identidade, que passava pelas minhas características genéticas rechaçadas como inferiores.
Meu pai sempre me contava a vez que visitou a avó dele no hospital. Uma ex-escrava que tinha conseguido uma carta de alforria. Ouvir aquilo me marcou para o resto da vida. Logo ali, tão próximo, a escravidão.
Nos momentos de aperto, meu pai dizia: “Valha-me, meu São Benedito”. Nunca ficou na mão.
Tem algumas mentiras que são espalhadas por aí. Que a colonização portuguesa foi menos cruel do que outras, que a miscigenação brasileira mostra como todos se misturavam. Não existe nada disso. O que existe é um racismo desgraçado enraizado nas bases do país. Minha experiência em Portugal só me traz mais certeza disso. O preconceito com os imigrantes africanos e brasileiros é óbvio. Existe uma desconfiança constante se você não for completamente branco-europeu. Só de entrar em um mercado, o segurança já fica mais atento e segue meus passos.
Não sei se sou preto ou branco. Sei que sou humano, sei que sou brasileiro, sei que sou antirracista. Qualquer forma de racismo é inaceitável. Seja onde for meu punho estará levantado. Cabelo de preto. Máximo respeito.
Ótimo texto. Emocionante e profundamente verdadeiro. Sou “branco” com ascendência india e negra, cabelo cacheado, meio uma coisa, meio outra. Percebo bem o que diz, não comigo, mas em todos os ambientes mais comuns. Principalmente depois que me mudei para a capital, na adolescência. Preconceito é uma triste atitude de quem ainda vive nos tempos da colônia.
Gratidão pela opinião contundente, Magno. Dá forças para continuar o trabalho.
Meu filho, eu sei o que é isso. Desde criança, ouvia dos colegas quando passava nos corredores escolares. “O leão está solto” ou então, “Chegou a escova Tek”. E minha mãe para evitar qualquer sofrimento e esconder a nossa ancestralidade, alisava o meu cabelo. Então, fiquei com aquele questionamento: “Afinal, quem eu sou? “Qual a cor real da minha derme”? Parda, marrom claro, mulatinha, morena… Com o tempo percebi que a minha pele miscegenada veio de três etnias, o branco, o preto e o índio. O histórico da minha ancestralidade é o que me basta saber. E que às pessoas dêem o nome que quiserem a cor da minha pele.
Sim, a questão do alisamento é muito presente no Brasil. Lembro de uma tia escovando o cabelo de um primo com força diariamente para ver se alisava. Nossa identidade real está acima dos preconceitos enraizados nesse país. Gratidão demais pelo seu comentário, foi emocionante de ler.
Um relato fruto de muita elaboração!
Gratidão pelo comentário, Raphael. Realmente, o texto requisitou uma mescla de elaboração com busca de sentimentos internos. Fico feliz que tenha gostado.