Peixes das nuvens: Úrsula, uma peixinha do sertão carioca

A obra inclui conceitos fundamentais e necessários para sobrevivência em tempos urbanos: ilhas de calor, quadrinhos, brejos, a peixinha, sertão carioca.

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Na última semana da Primavera de 2024, às vésperas do Natal, recebi um inesperado presente. Um livro/quadrinhos, de Luz Stella Rodríguez e Rachel Paterman:

As autoras informam, ainda,  que o livro se encontra nos formatos PDF e EPUB ACESSÍVEL, este produzido em conformidade com a proposta inclusiva do edital de cultura da Lei Paulo Gustavo (Secec/RJ) e está disponível para download gratuito em:

https://linktr.ee/ursula_hq?fbclid=PAY2xjawHNlmNleHRuA2FlbQIxMQABpmttzGVwDEJX6_WhL4RYCf7Lhcbmrl89kz3qX5VG4rHz2P46Sg9cT9xpEA_aem_dOuR2KLo7HhG3wKZLPGnag

Além do atraente grafismo, a obra inclui, mais do que uma sucessão de quadrinhos e palavras, conceitos fundamentais e necessários para sobrevivência em tempos urbanos: ilhas de calor, quadrinhos, brejos, a peixinha, sertão carioca…

As ilhas de calor são produzidas diretamente pelo concreto invadindo a natureza, cimentando a mata, a grama, soterrando lagoas e brejos, ganhando terrenos da orla, inventando praias falsificadas, como Copacabana.

Os quadrinhos remetem diretamente à infância, não pelo conteúdo aqui apresentado, indispensável para todas as idades, pelo menos para incomodar aqueles resistentes à extinção diária da vida e às mudanças climáticas. Foi nos quadrinhos que aprendi a ler: Tico-tico, a Turma do Pererê, de Ziraldo… Depois as revistas de aventuras da Rio-Gráfica como O Fantasma e Mandrake. Alguns clássicos da literatura mundial ganharam espaço nos quadrinhos, me apresentando a Os Miseráveis, de Victor Hugo ou Dom Quixote, de Cervantes. Foi um trampolim para ler as versões integrais. Daí a importância dessa obra, da ousadia benfazeja das autoras, contribuindo como um peixe das nuvens para a perpetuação da resistência.

Os brejos eram cenários de muitas infâncias, nossas miniaturas de rios, ambientes de aventuras, pescando girinos, assistindo alguns balés de pirilampos em bairros pouco adensados. A propósito, para onde foram todos os pirilampos? Os brejos, locais sujos e contaminados, eram inimigos dos pais zelosos como estes do livro. Para nós, pontos de reunião e descobertas, antes de assistirmos ao seu desaparecimento, sucumbidos diante de aterros, muitos deles irregulares.

A peixinha, constantemente assinalando seu gênero feminino como a Terra e a própria Natureza, me fez lembrar um caso recolhido nessas andanças pelos tantos Brasis. No sertão das Gerais um agricultor insistia que, durante uma chuva torrencial, peixes caíram do céu, talvez peixes das nuvens, como nossa Úrsula. Melhor aceitar a lenda do que tentar explicar que vieram com a cheia do rio vizinho e não puderam retornar com a vazante. Não eram pequenos rivulídeos, como nossa protagonista, mas algum cordado presente no córrego, sem a provável capacidade de diapausa (esses termos são devidamente esclarecidos na obra, em criativo glossário).

O Sertão Carioca, essa imensidão foi assim “batizada” por Armando Magalhães Corrêa, escultor formado pela Escola Nacional de Belas Artes, onde lecionou. Autodidata, foi um dos primeiros ambientalistas, trabalhando no Museu Nacional. A grande região, outrora generosa com a exuberante Natureza, assiste ao assalto diário pela ganância especulativa que, dia a dia, insiste em devastar. Até poucas décadas a região era denominada Zona Rural, que incluía a região de Jacarepaguá e toda a zona oeste de fato, abrangendo bairros como Campo Grande e Santa Cruz. A velocidade da ocupação desenfreada do solo, alegando “vantagens” para a população que sequer foi consultada, continua (e continuará) a aterrar lagoas, brejos (o lar de Úrsula), cobertura vegetal, resquícios de biomas.

A Zona Rural se transmuta em Zona de Calor, apresentando as temperaturas máximas com frequência, que possivelmente cozinharia os poucos ovos da família de nossa peixinha.

Daí a importância corajosa desta obra que, sin perder la ternura jámas, contribui para que o estado de alerta seja permanente, pelo menos diminuindo os danos, na direção de tempos (Terra e Natureza) melhores.

Aparentemente dedicada às crianças, trata-se de uma leitura recomendada e necessária para a cidadania, em tempos que algumas palavras como sustentabilidade, meio ambiente, preservação, são apenas repetidas sem a compreensão da seus conceitos essenciais, apenas para demonstrar algum falso comprometimento, angariando simpatias em redes sociais.

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Carioca, arquiteto graduado pela FAU-UFRJ, professor, incluindo a FAU-UFRJ, no Departamento de História e Teoria. Autor de pesquisas e projetos de restauração e revitalização do patrimônio cultural. . Consultor, palestrante, coautor de vários livros, além de diversos artigos e entrevistas em periódicos e participação regular em congressos e seminários sobre Patrimônio Cultural e Arquitetura no Brasil.

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