A cidade do Rio de Janeiro é pródiga em sua paisagem, valorizada pela presença de elementos da Natureza como uma floresta urbana, lagoas, montanhas e, principalmente, a beleza de suas praias.
Além disso, pela sua condição política, centro oficial do poder entre 1763 e 1960, abriga uma fantástica coleção de exemplares arquitetônicos que testemunham as diversas fases da arquitetura nacional.
Por todas essas características, a cidade é conhecida como uma das mais belas do mundo – Cidade Maravilhosa – e foi declarada Patrimônio Mundial pela UNESCO principalmente pela relação entre homem e natureza, recebendo, em 2012, a honraria de primeira Paisagem Cultural Urbana.
No entanto, a situação superficial não se sustenta diante de mergulhos mais profundos em sua história e seu cotidiano que revelam outras facetas ocultas pela propaganda.
A cidade do Rio de Janeiro certamente é uma das mais cruéis algozes de seu próprio patrimônio, seja ele natural ou construído. Poucas urbes no mundo, salvo por catástrofes naturais ou guerras, foram responsáveis pela própria destruição.
Em coluna anterior, citamos alguns exemplares arquitetônicos que desapareceram por motivos e interesses diversos. Em relação à natureza, a cidade também não foi benevolente. Desde seus primórdios, no período colonial, aterrou-se indiscriminadamente algumas lagoas para facilitar acessos ou liberar áreas para ocupação. Assim foram extintas Desterro (entre os morros de Santo Antônio e Santa Teresa), Boqueirão (onde foi construído o Passeio Público), Sentinela (nas imediações da futura rua do Riachuelo), Santo Antônio (onde se implantaria o Largo da Carioca).
No século XIX, foi a vez do manguezal São Diogo, um braço de mar que entrava até as imediações da futura Praça da Bandeira. No início do século seguinte, surgiria o Canal do Mangue e a Av. Francisco Bicalho ocupando aquela região outrora alagada.
Foi também nos oitocentos que a Floresta da Tijuca foi devastada para plantação de chá e café, iniciativas que não lograram êxito. Graças a iniciativa de D. Pedro II, a floresta foi replantada, tornando-se um marco para recuperação do meio ambiente.
Em relação às praias, talvez o ponto turístico de maior orgulho e atração, a afirmativa será surpreendente para muitos leitores. A orla carioca, do Posto 6, em Copacabana, entrando pela baía de Guanabara, é totalmente recriada pela mão do homem. Do Leme ao Pontal, verso cantado pelo saudoso Tim Maia, existe a chance de identificar-se um cenário mais próximo do original, com exceção para toda Copacabana. Uma das praias mais famosas do mundo foi vítima de um grande aterro a partir do final da década de 1960, modificando o perfil daquele atrativo areal que abrigou clínicas, capelas e mansões em suas primeiras décadas de ocupação, no século XX.
No dia 15 de março de 1971, encerrando a administração do governador Negrão de Lima, inaugurava-se uma nova praia, incluindo pistas duplas para veículos, calçadas alargadas revestida com o calçamento de pedras portuguesas que se tornou símbolo. A faixa de areia original foi ampliada, dragando-se toneladas de areia para criação da nova orla, não mais aquela que originou a canção “Princesinha do Mar”. A Avenida Atlântica, que conta apenas com numeração par, pouco a pouco demolia seus casarões e erguia um paredão de edifícios multifamiliares, alterando para sempre qualquer referência àquela região selvagem, com ar benfazejo capaz de curar moléstias diversas, como estava nos reclames dos bondes. Em breve, aquela região seria ocupada por outra fauna urbana.
No sentido inverso àquele cantado por Tim Maia, do Posto 6, em Copacabana, entrando pela Baía da Guanabara até os limites com o município de Duque de Caxias, TODO o litoral foi drasticamente modificado. Até mesmo um observador amador de um mapa mais antigo poderá constatar as expressivas transformações, nem sempre positivas para a paisagem e meio ambiente.
Saindo de Copacabana no rumo Norte, contorna-se o Morro da Babilônia e surge a pequena Praia Vermelha, aos pés do Morro da Urca, bloqueada por uma grande construção militar até a década de 1940. Com mesmo nome do morro, um bairro surgiu de um aterro, na década de 1920. O conjunto rochoso, coroado pelo Pão de Açúcar, unia-se ao litoral e as novas ruas recebiam suas primeiras residências.
Em seguida, a bucólica praia da Saudade, que atraiu a construção do Hospício dos Alienados, foi aterrada e, posteriormente, abrigou as instalações do Iate Clube do Rio de Janeiro, limítrofes da Enseada de Botafogo. Esta pequena praia, representada à exaustão em pinturas e fotografias, assistiu à transformação de sua aparência original e à decadência da balneabilidade de suas águas. Aquela praia, outrora muito frequentada, passou a integrar o conjunto do Aterro do Flamengo, implantado no início da década de 1960, que alterou definitivamente toda aquela região até as imediações do Museu de Arte Moderna.
A descaracterização do litoral carioca não parou ali. Desde a década de 1920, com a demolição do Morro do Castelo, notável endereço histórico da cidade, aconteceu um grande aterro na antiga Ponta do Calabouço, acabando com a Praia de Santa Luzia.
A nova área resgatada do mar abrigou a Exposição do Centenário da Independência, em 1922 e, alguns anos depois, recebeu o Aeroporto Santos Dumont e algumas sedes náuticas de clubes de remo.
Algum metros adiante, sentido Norte, o tradicional Largo do Paço, com o notável chafariz de Mestre Valentim à beira-mar, se afastava cada vez mais do oceano por sucessivos pequenos aterros que acabaram com o Cais Pharoux.
Dali em diante, na direção da Prainha (depois Praça Mauá), a cidade assistiu a uma verdadeira devastação da região litorânea, soterrando enseadas, manguezais e outros acidentes geográficos afins para a construção do Cais do Porto e da Avenida Rodrigues Alves, nas primeiras décadas do século XX.
O Cemitério dos Ingleses, primeira necrópole a céu aberto do Rio, implantada à beira-mar, foi afastado da praia, comprometendo o bucolismo de seu sítio original.
Aquela antiga urbe litorânea era compulsoriamente distanciada do mar, o mesmo mar que trouxera seus primeiros ocupantes europeus, os franceses, sucedidos pelos portugueses, que fundaram a cidade lusa pelas mãos de Estácio de Sá. Aquelas mesmas águas da baía assistiram às batalhas decisivas, com a participação dos povos originários, que depois foram esquecidos em raros nomes de ruas ou pequenos monumentos.
Do entroncamento do Cais do Porto com o então aberto Canal do Mangue, responsável por drenar o grande manguezal que se espraiava até as imediações do antigo Largo do Matadouro (depois Praça da Bandeira, em 1911), foi aberta, na década de 1940, a Avenida Brasil, aterrando praticamente toda aquele trecho litorâneo até os limites do município vizinho de Duque de Caxias. Pequenas praias, que faziam a alegria dos moradores suburbanos, como Ramos ou Maria Angu, sumiram do mapa ou tornaram-se impróprias para o banho.
Fica uma reflexão para os leitores. Como pode uma cidade que tratou com tanto desprezo sua paisagem natural, suas florestas, lagoas, praias, o próprio litoral que tanto serve de atração, ser premiada pela relação Homem-Natureza?
É desconcertante, mas praias famosas da cidade maravilhosa são recriações, nem sempre fiéis às originais, que continuamente tentam descaracterizar em nome de um certo progresso ou de turismo. Produtos “made in Brazil for export”.