Que canta sempre esse estribilho

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Foto: Divulgação

                                             

Autora convidada: Cris Linhares Coutinho

Mas, afinal o que querem as mulheres? Perguntava-se Freud com seus botões, no século passado, quando vivia debruçado em desvendar os mistérios da alma. A resposta veio em 1979, com Caetano Veloso, no disco “Cinema Transcendental”, através da canção “Elegia”. Nela Caetano se admite como o sabedor da arte de interpretar a mulher. No entanto, ele não divide o seu segredo com ninguém. Em contrapartida, seu amigo Chico Buarque, em sua grandiosa humildade, se admira por ser um desconhecedor e eternamente alguém em busca daquilo que faz pulsar o universo feminino. Chico, o amante incontrolável, é verdadeiramente um voyeur das inquietudes humanas, mais especificamente das profundezas da alma das mulheres.

Adentrar, penetrar e, algumas vezes se fazer mulher, não é algo relativamente fácil para um homem. Entretanto, Chico deu vida a tantas personagens marcantes, que se torna difícil diferenciar os limites que situam o poeta e as musas. Nas músicas, nos livros e no teatro, as mulheres de Chico não são simplesmente narradas, elas se tornam potências altamente incandescentes, que deixariam Nietzsche boquiaberto em vê-las como são: estrelas dançarinas.

O que se constata é que Chico propriamente não canta; ele, na verdade, se empresta, no canto, para que as mulheres sejam as estrelas do show. Na canção “A voz do dono e o dono da voz”, entendemos que a primeira mulher de Chico é a voz, com quem forma um romance dramático, intenso e conflitante de um casal “de entrega e de abandono, de guerra e de paz, de contras e prós”. Nesse amor, o cantor “prensa a voz” e a voz, no seu firme contrato com o cantor, “resulta um prato” que é o vinil, o disco “que gira para todos nós”. Graças ao poder criador da voz, outras vozes ecoam e se fazem ouvir; são as bailarinas, as atrizes, as guerreiras, as lésbicas, as mães, as santas e as putas que podem, por fim, cantar ao mundo seus amores e suas aflições.

A voz do dono ama o dono da voz e o dono da voz se deixa seduzir por esse amor; a única exigência dessa núpcia é que o cantor nunca traia essa voz, essa primeira mulher, esse primeiro encantamento: “o que é bom para o dono é bom para voz”. O bem do cantor é, então, seu amor pelo cantar; e o cantar é um eterno retorno da voz, da evocação das paixões, do querer imprimir sonoridade e beleza nas palavras. Embalado pelo amor, Chico canta sempre o mesmo estribilho: a mulher, a liberdade, a nostalgia. E, nesse repetir, nesse bater na mesma tecla, ele dá a vida a um universo particular de vozes que, em coro, formam o conteúdo poético do cantor.

“Angélica” – a canção que fez para Zuzu Angel – é que enfatiza a repetição do canto como forma de ele não ser esquecido. O estribilho vai e vêm num ritmo monótono porque precisa ser lembrado, porque a voz não pode ser calada. Angélica é a mulher que luta para a memória de seu filho morto não ser apagada; o estribilho repetitivo de toda mãe é o amor sem limites; seu canto é dobra do sino, um ecoar pesado, dolente, lamentoso. Mas outras mulheres cantam os seus estribilhos repetitivos, cantados pela obsessiva voz do cantor apaixonado.

A bailarina anônima de “Ela é dançarina” se repete no canto de sua sapatilha; toda noite ela “tchan no cenário”, brilha no palco e, grandiosa, “empina” os pés. Alheia ao seu homem, o “funcionário” que pega o ponto, a bailarina afirma-se como mulher emancipada. “O horário é que nunca combina” entre os dois, mas a bailarina não se abate; segue seu fluxo de arte e de poder, porque é tudo o que sabe fazer. Também as “Mulheres de Atenas”, ainda que privadas de sonhos e de vontades e eivadas de presságios, só sabem fazer o mesmo gesto, cantar o mesmo estribilho corajoso e ardente: o arado do terreno do amor, o banhar-se ao leite, o perfumar-se de flores, o cuidadodas melenas para, enfim, perpetuarem o “orgulho e raça” dos “heróis e amantes” e gerarem“pros seus maridos os novos filhos de Atenas”.

O estribilho se repete no domínio e na volúpia detectados em “Você vai me seguir”. A mulher que quer ser ouvida vai “servir”, “se curvar”, “resistir” na mesma proporção em que vai “possuir”, “infernizar”, “beijar” e “apunhalar”; ela é imprevisível e ambígua no seu ser, como é ambígua e imprevisível a paixão, pois tanto se inclina como se apodera do homem. Em “As vitrines”essa ambiguidade se revela na mulher que não é carne nem osso, mas “sombra a se multiplicar” no vão da cidade, derramando a poesia dúbia da alma aflita e feliz.

Em “Tanto amar” a mulher não só se esquiva da sedução da voz masculina: “meus olhares, evita”. A força dessa mulher não é aguardar o homem que volta da batalha, nem mesmo se curvar a ele, mas vencê-lo com a força de um olhar que o transpassa e que guarda o mistério de pestanejar, fitar e desmanchar a pintura com lágrimas. Apenas com o olhar essa mulher convida o poeta para uma “luta aflita”, para o “tanto” que realmente importa: o amar, o querer que essa mulher se faça presença total e absoluta em sua vida. Ele nem tem certeza de sua beleza, do crédito seu amor, mas o infinito enviesado do olhar dessa mulher lhe arrebata imediatamente ao contato com o “balé esquisito”, com a dança sagrada/profana da existência.

As mulheres que Chico dá voz são arquétipos corriqueiros e conhecidos do cotidiano. Elas, seres desejantes e desejáveis, dizem, através do encanto poético, o mistério-de-si, o que o público não consegue ou mesmo precisa ouvir. “Geni e o Zepelim”, cujos versos tornaram-se um bordão conhecido, nos faz refletir sobre como a liberda de causa aversão aos espectros ultraconservadores de uma sociedade. A heroína, se faz mulher por prazer. Promovendo um refrão de recusa pela cantoria ensaiada da cidade em oposição à exposição de seu corpo, que não só se transveste, como também sente e age de acordo com seus princípios e instintos.

“Ana de Amsterdam”, a prostituta que vem comercializar seus atributos num Brasil em meio à guerra entre Holanda e Portugal, no desenrolar dos atos, cresce como uma das salvadoras da peça “Calabar”; muito por seu senso de ética e de justiça que não estão à venda e não são negociáveis. Ana não tem outra opção a não ser se impor de fato como é. Seu canto é sua apresentação; seu estribilho repetitivo é sua presença incisiva, afrontosa, cuja essência se afirma sem máscaras. Quando se enamora de Barbara, permite-se viver a lascívia sem pudores e se desmanchar em amores, para trazer à luz o submundo de um país ruído.

As entoações do trovador são nostalgias, refrãos sempre revisitados, e se voltam para o amor pueril que transvê seu passado. As atrizes, por exemplo, têm um peso fabuloso dentro do caldeirão melódico de Chico. Ele, de todas as maneiras, coloca essas figuras como forças de coesão entre o fantástico e o relativamente humano; seja a “Beatriz” de Dante de quem se quer sugar os mistérios para desvelar o que ela teima em esconder, sejam “As atrizes” que retiram as roupas e desdenham o telespectador totalmente passivo e excitado. Ou até mesmo a mulher que pode ser mil, em “Ela faz cinema”, da qual nunca se sabe quando finge ou deveras sente.

As mulheres – inalcançáveis, contudo, humanizadas. Sonhadas, mas que se materializam nas notas da poesia, elas exercem um poder magistral sobre o cantador, regem com maestria as personas que ora se expõem, ora se escondem no estado lúdico do poetar. E nada pode impedir essa aparição. Através delas o autor se faz vivo; enquanto penetrado por elas, ele também persiste. A pergunta de Freud, se levada a cabo – e, enquanto Caetano não quiser – ficará sem resposta. Quanto ao Chico, nunca foi intenção sua definir um sentido. O que Chico pretende é continuar jogando. A vontade se revela muito mais pelo calor do gesto do seduzir e ser seduzido do que se perder em uma resposta que não saciará a sua busca pelo mistério.

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