Em tempos de Carnaval a ancestralidade que trazemos nas costas vem à tona com mais força que em outras épocas do ano. Cresci em berço de samba, com muito orgulho. Sou verde e branco desde minha raiz e meu pavilhão é serrano, é de Madureira, é imperial. Na casa em que vivi durante a infância, os discos de samba-enredo eram tão pontuais quanto o cafezinho da tarde que meu avô Gradim tomava religiosamente. De belas e inesquecíveis composições fui testemunha. “Bumbum paticumbum”, “Kizomba, a festa da raça”, “Ziriguidum 2001”. Cantava tudo de cor, ansioso para o dia do desfile. Certamente não assistia a todos, pois criança pulava Carnaval nos bailes vespertinos do subúrbio carioca. Lá pelas tantas da noite, despencava de sono. E a fantasia era vivida mais intensamente nos sonhos daqueles fevereiros irreparáveis.
Todavia duas coisas eram certas, “batata”, como dizia Nelson Rodrigues. Eu fazia um esforço tremendo para ver a coroa de meu Império Serrano e ver Joãosinho Trinta atravessarem a passarela da Marques de Sapucaí. Acontecimentos imperdíveis exigem esforços incomuns. Ver meu Império significava rever minha origem, como quem senta com seus avós para folhear um álbum de fotografias. Mas ver Joãosinho representava ver um espetáculo de cores e luzes, como se, na verdade, eu não estivesse assistindo a uma escola de samba e sim a uma sessão de ópera.
João Clemente Jorge Trinta, o Joãosinho Trinta, nasceu em 23 de novembro de 1933 em São Luís. Em sua menoridade a centelha artística já se expressava nele. Tanto que, aos 10 anos, tomava aulas de balé clássico, carreira com a qual sonhava seguir. Conforme diz o próprio artista no documentário A Raça Síntese de Joãosinho Trinta (2009), ele era pilhado pela “obsessão de ser bailarino, de estudar dança”. Razão que capitaneou o maranhense até o Rio de Janeiro, em 1957. Aplicado e talentoso, Joãosinho compôs o corpo de baile do Teatro Municipal, tendo participado de diversos espetáculos. No entanto, segundo Fernando Pamplona, João “compreendeu que não poderia ser bailarino”, por conta de sua estatura física.
Apesar disso, Joãosinho não desistiu. O “olho clínico” de Pamplona – que, à época, era carnavalesco do Salgueiro e cenógrafo do Municipal encontrou nele um potencial a ser aproveitado, transferindo-o do palco para os bastidores. Assim, ao lado de Arlindo Rodrigues e do próprio Pamplona, Joãosinho começou a trabalhar com artes cênicas. Destacou-se entre esses dois experientes carnavalescos “a maneira maravilhosa com que ele transformava magicamente as coisas como aderecista”. Do papel coadjuvante ao protagonismo foi um passo. Ao substituir outros artistas, Joãosinho assumiu as funções de figurino, de cenário e de iluminação até o momento ápice em que foi régisseur dirigindo uma das óperas do repertório.
Pamplona e Rodrigues, encantados com a habilidade de Joãosinho, convocaram-no para trabalhar como assessor no Salgueiro na década de 60, em que a escola se consagrou campeã como o enredo “Xica da Silva”. Somente com a saída de Pamplona e Rodrigues foi que Joãosinho foi convidado para ser carnavalesco, sendo três vezes vitorioso na escola tijucana. Na opinião de Carlos Heitor Cony, ser carnavalesco era uma propensão nata em Joãozinho, já que sua formação erudita como leitor – ainda que não acadêmica – lhe proporcionava uma capacidade de contar histórias, de formular enredos. Além do mais, Joãosinho dominava como ninguém a rearticulação dos materiais, transformando “os elementos mais pobres do mundo em ouro”.
Aproveitando essa observação feita por Pamplona, entendemos então o que vem a ser a estética trinteana, que não só inovou e redefiniu o desfile das escolas de samba, bem como estabeleceu um paradigma definitivo para os futuros carnavalescos. Mas existe algo nessa mesma estética que me chamou ainda mais atenção, especialmente pelo fato de ter saído diretamente de uma declaração feita pelo próprio Joãosinho. No documentário de Paulo Machiline, Joãosinho inicia dizendo algo espetacular que esboça um conceito claro dentro do esquema cênico proposto pelo seu modo de fazer Carnaval. Ele declara que sua “intuição” sempre disse que “despois da energia elétrica, da energia atômica, que uma terceira energia, chamada alegria, poderia realizar grandes eventos”. Com esse modo de pensar, Joãosinho, curiosamente, afina com o pensamento de significativos filósofos como Spinoza e Nietzsche, que entendiam o afeto da alegria ou como expansão/expressão de uma potência infinita de Deus ou como um modo afirmativo de o indivíduo encontrar um elo de vitalidade e de sanidade física.
Pamplona o viu como o rei Midas do Carnaval. Por minha vez, entendo Joãosinho como sendo o usineiro da alegria, como aquele fabricante de saúde física e espiritual que, através das cores, das formas, dos brilhos e das mise-en-scènes deslocava forças em nome de um grande empreendimento que é o Carnaval. O evento carnavalesco é uma festa e, enquanto tal, não é um prazer solitário. É pateticamente burguês pensar o Carnaval como sendo o “bloco do eu sozinho”. Seu conceito implica a socialização, a partilha da alegria; e se a alegria é uma potência energética, então o Carnaval é uma comunhão energética. Ao pensar o Carnaval pelo prisma da materialidade, da corporalidade e da emoção, Joãosinho fala diretamente ao inconsciente coletivo e às massas, reforçando as palavras de Cony: “tenho a impressão que, de todos os carnavalescos, o que mais teve intimidade com o povo foi o Joãosinho Trinta”.
Já na Beija-Flor, escola com a qual arrebatou cinco títulos, o desfile de Joãosinho em que o aspecto dionisíaco da alegria e da comunhão popular ficou mais evidente foi o genial “Ratos e urubus, larguem minha fantasia” (1989). Foi com esse desfile que o maranhense mais se aproximou da arte “no sentido de Glauber Rocha”, como pontuou Cony. Quer dizer, Joãosinho partiu das mesmas premissas criativas e estéticas de Glauber, a saber, o improviso e a perplexidade, para conceber esse enredo inventivo; premissa essa que não lhe surgiu da pura imaginação, mas, ao contrário, do olhar crítico, da percepção desrromantizada do real, como sabem fazer os artistas contemporâneos. Joãosinho, por mais letrado que fosse, não dispensou o contato com a gramática popular. Por isso, causou-lhe indignação o estado caótico da cidade.
No fim dos anos 80, com a expansão da política neoliberal, que parecia, aos países periféricos, um estado dissoluto de miséria e marginalidade, Joãosinho viu um Rio de Janeiro “tão maltratado, tão sujo”, com uma populosa comunidade de “pedintes, mendigos e crianças abandonadas pelas ruas”. Inspirado pelo quadro social da cidade, Joãozinho decidiu fazer um enredo que “chamasse a atenção para essa decadência do Rio de Janeiro”.
Destarte, “Ratos e urubus” confirma a visão dionisíaca do Carnaval, pelo fato de que a festividade (como um todo) congrega uma multidão de pessoas anônimas e indistintas, que se despersonalizam em fantasias, unindo-se no espaço mais democrático da cidade – que é a rua – endossando que nenhuma classe ou atribuição étnica, moral e religiosa imponha valores absolutos. O que vale, em primeira instância, é a partilha da alegria entre o povo. Se a cidade é miserável, por um lado e rica, por outro, a festa deverá agregar essa diversidade. Não podemos, então, admitir que o Carnaval celebre a estratificação político-social, rachado entre “quem tem” e “quem não tem” ou mesmo entre “quem ganha” e “quem perde”. Quando se trata da pura alegria – e não de dinheiro ou disputa por “verdades” – o Carnaval se encontra em seu habitat.
A letra do samba de “Ratos e Urubus”, escrita por Betinho, Glyvaldo, Zé Maria e Osmar, destaca essa indistinção de classes ou mesmo essa transferência de posições e de funções, típicas do Carnaval. “Sou na vida um mendigo, na folia eu sou rei”, diz o samba. O povo miserável encontra visibilidade e potência não pelo que não tem ou pelo que perdeu, mas pelo que pode, pelo que vive. É a “euforia que consome” a energia que constrói grandes acontecimentos, apesar dos ratos e dos urubus que espoliam os direitos do cidadão e que se alimentam das carcaças do poder. A metáfora do rato e do urubu expõe, no desfile de Joãosinho, o caráter dos responsáveis pelo aumento e pelo engessamento da desigualdade social, daqueles que intensificam a zona abismal que, por posse, separa as classes e que, consequentemente, descarnavaliza os espíritos.
Descarnavalizar é a atitude enfraquecedora do rato e do urubu que interdita o contato alegre entre pobre/rico, mendigo/rei. Por isso, a Beija-Flor apelou pela alegria: “larguem minha fantasia! Deixem-me brincar meu Carnaval”. Na concepção de Joãosinho é preciso estar ciente de que o Carnaval é massificação de forças e arrebatamento daquilo que podemos ser de mais civilizador, isto é, promotores de festa, usineiros do prazer. Numa civilização que se preze, vale mais a alegria que a guerra, a comunidade que a solidão, a pluralidade que a unilateralidade.
Sob o pretexto de tornar o povo o protagonista de uma festa já saturada pelas cifras milionárias e pelo excesso de superficialidades, Joãosinho usou seu desfile não apenas para denunciar, bem como para convidar “mendigos, desocupados, pivetes, meretrizes, loucos, profetas, esfomeados”, enfim, “todo esse povo de rua a recolher todo esse resto de luxo do lixo”, sem varrer a miséria por completo. Não se trata de brincar o Carnaval para esquecer a injustiça. Pelo contrário! O que pretendia Joãosinho era encarar o poço sem fim da miséria, fundindo o luxo no lixo, o rico no pobre e aproximando o que tende a se apartar. Essa síntese estética e social sempre fez parte de seu trabalho como carnavalesco, visando mostrar um país que sabe fazer de suas mazelas um meio de ressignificação através da beleza e da alegria. Por isso, Pamplona tem razão ao dizer que Joãozinho não foi só importante enquanto carnavalesco, mas enquanto pessoa pública, enquanto civilizador, já que ele “marcou a vida do Brasil.”