Roberto Anderson: A Belo Horizonte

Uma foto atual do Cine Brasil, com suas elegantes linhas Art Déco ressaltadas por seus vitrais iluminados à noite, me trouxeram à memória a Belo Horizonte de alguns anos de minha infância

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Centenas de imagens chegam aos nossos olhos pela internet, embaralhando realidade e ficção, passado, presente e futuro. Algumas, como madeleines, evocam sensações quase esquecidas. Uma foto atual do Cine Brasil, com suas elegantes linhas Art Déco ressaltadas por seus vitrais iluminados à noite, me trouxeram à memória a Belo Horizonte de alguns anos de minha infância.

Frequentei aquele cinema muitas vezes, em situações diversas. Por ter conquistado o segundo lugar no concurso dos melhores dentes de leite da cidade, entre outros prêmios, fui dono de uma permanente para qualquer cinema da cidade. Era um passe livre, com direito à companhia de um adulto! Mas também frequentei os cinemas da cidade como acompanhante das primas, quando essas saiam com seus namorados. Era o que se chamava vela, uma garantia de que uma moça de família não estaria sozinha com seu namorado. Mas, no escurinho do cinema, o filme na tela, a pipoca na boca, quem daria conta do que se sucedia ente eles?

O Cine Brasil fica na Praça Sete, onde um obelisco, talvez um pouco diminuto para a monumentalidade que lhe é pedida, marca o centro de uma rótula, onde chegam diversas ruas. Não longe dali está o Viaduto Santa Tereza sobre a via férrea que leva ao bairro da Floresta, onde Drummond, e depois outros escritores mineiros costumavam se arriscar, passando por cima dos arcos que o sustentam. Logo ao lado, está o Parque Municipal, onde aos domingos, depois de conseguir acordar o tio que havia trabalhado até tarde da noite, íamos remar no lago, passando por baixo de pontes e contornando ilhotas artificiais.

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Os passeios no parque eram o programa com os parentes de menos posses. Já com a madrinha, os passeios eram de carro. Ela, que era uma das primeiras mulheres a dirigir na cidade. Não importava a programação, se uma visita a um parente distante ou uma ida à feira. Se fosse de carro, lá estava eu, sentado no banco da frente, solto, pois não havia cintos de segurança, podendo colocar a cabeça para fora para observar as ruas, os passantes, as lojas e tudo o mais que fosse interessante. Não havia tantos carros em Belo Horizonte e os pedestres nas áreas mais movimentadas, atravessavam na frente dos carros, ainda sem perceber que a sua liberdade sobre as ruas estava em processo de encolhimento.

Como esquecer da intensa arborização no meio da avenida Afonso Pena, bem na área central? Vistas do vidro da frente do carro, as copas das árvores criavam um rendilhado contra o céu, que filtrava a luz do sol. A luz sumia e reaparecia por entre as folhas, para deleite da criança maravilhada com os passeios pela cidade. Eram 350 Fícus benjamina, tristemente cortados às vésperas do golpe de 1964. Tal atitude malsã da prefeitura local já anunciava a aridez dos anos que viriam. Essa história se repete com o atual prefeito de Belo Horizonte, que corta árvores para instalar uma pista de corrida de automóveis. Nunca aprendem.

As compras na feira livre da avenida Afonso Pena eram um momento de mostrar simpatia, sorrir para os tantos adultos a quem era apresentado, dar oi para os feirantes, e ajudar a guardar tudo no carro. Ali perto ficava também a fábrica de laticínios, onde a compra do doce de mocotó em barra não podia ser esquecida.

Outro passeio comum no automóvel era a visita aos parentes. Havia a tia avó meio surda, que só se vestia de preto, havia a outra que era gorda e risonha e havia os tios negros, frutos das aventuras do bisavô. Outra visita era à casa da minha avó, de quem ouvia dizer que sofria com muito trabalho e poucos recursos, mas que era uma senhora afável e de sorriso fácil. Sorriso fácil como o do tio Lourival, outro que parecia estar sempre de bem com a vida. Ao contrário dos tios sorridentes, havia o tio sisudo e sua esposa empertigada, o único casal que eu conhecia que morava num prédio de apartamentos, com elevador, na praça Raul Soares. Quando era possível, dava uma espiada pela janela para ver a praça mais linda da cidade, com seus arbustos geometrizados e seu chafariz iluminado por luzes coloridas à noite. Circundar de carro a praça, apreciando os chafarizes, era um dos maiores prazeres que a cidade oferecia.

Belo Horizonte era então uma cidade aconchegante, de um tamanho que se podia percorrê-la quase por inteiro. Os bairros tinham suas praças, e nelas um jardineiro fixo cuidava das plantas com instrumentos de trabalho que ficavam guardados num baú na própria praça. Os pobres existiam, e eram vistos quando vinham às portas pedir uma ajuda. Mas não se sabia onde moravam. Eram invisíveis para a pequena capital, orgulhosa de sua modernidade.

O horizonte era marcado por montanhas, que ainda não haviam sido devoradas pela mineração. Para além das montanhas que circundavam a cidade, ficavam os clubes campestres, um programa incontornável nos fins de semana para quem tinha um pouco mais de recursos. As coisas e as pessoas pareciam estar em ordem, numa harmonia que deveria durar para sempre. Era doce e suave aquela Belo Horizonte.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.
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