Roberto Anderson: A gestão do Patrimônio francês

Tendo a França inspirado, de forma marcante, a cultura brasileira, vale a pena conhecer o desenvolvimento dos institutos de proteção ao patrimônio daquele país

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Foto: Roberto Anderson

Tendo a França inspirado, de forma marcante, a cultura brasileira, vale a pena conhecer o desenvolvimento dos institutos de proteção ao patrimônio daquele país. Lá, a ideia de proteção a bens ligados à história surgiu com as turbulências da Revolução Francesa, quando se pôs abaixo o antigo regime. Em paralelo às drásticas mudanças, diversas vozes passaram a defender a proteção dos bens materiais daquele período, vistos como parte da identidade nacional. Com a revolução, veio também a estatização dos bens da nobreza, do clero, dos que fugiram e da coroa. Tudo isso constituía um imenso universo de bens, dos quais foi preciso selecionar aquilo que se considerava de valor histórico. Ainda em 1790, foi então criada uma comissão de monumentos, responsável por esse trabalho.

Posteriormente, em 1830, foi criado o posto de Inspetor Geral dos Monumentos Históricos, para o qual foi indicado o historiador e escritor Prosper Merimée, autor do conto que deu origem à ópera Carmen. Ele instituiu a Comissão de Monumentos Históricos, que em 1840 publicou uma lista com 934 edifícios que deveriam ser protegidos. Nove anos mais tarde, a Comissão já havia listado 3.000 bens a serem protegidos, um feito impressionante. Mas, somente com uma lei de 1887 essa classificação ganhou valor jurídico, gerando direitos e deveres para os proprietários.

Em 1927, uma lei estabeleceu um segundo nível de proteção, a inscrição, abaixo da classificação. Em continuação à evolução do interesse pela proteção do Patrimônio e à ampliação do arcabouço de bens a serem protegidos, uma lei de 1930 permitiu a proteção de sítios e monumentos naturais. É interessante notar que até então o Brasil não contava com uma legislação de proteção ao seu Patrimônio, o que veio a ocorrer com a criação do Sphan em 1937.        

Ainda na França, em 1943, de forma a preservar a ambiência dos monumentos preservados, foi instituído um círculo de proteção de 500 metros ao redor dos mesmos, uma medida importante, mas pouco precisa. A compreensão de que o valor de certas cidades e Centros Históricos ia além dos monumentos preservados, residindo principalmente na coerência do tecido urbano no qual tais monumentos se inscreviam, levou à criação dos Setores Protegidos (Secteurs Sauvegardés) pela Lei Malraux, de 1962. Para cada setor, que substituiu o círculo de 500m de raio, devia ser elaborado um plano, detalhando o que havia a preservar ou a demolir, indicando inclusive elementos internos a serem mantidos como escadas e lareiras.

Mais tarde, a necessidade de se proteger as pequenas localidades rurais e sítios paisagísticos franceses, e o interesse em se estabelecer uma política urbana descentralizada, levou à criação em 1983 das Zonas de Proteção do Patrimônio Arquitetural, Urbano e Paisagístico (ZPPAUP). Nessas Zonas de Proteção, cuja proposição era local, os imóveis tinham seus tetos e fachadas protegidos, como nas Apacs do Rio.

Em 2016, uma nova lei substituiu os Setores Protegidos e as ZPPAUP pelos Sítios Patrimoniais Notáveis (sites patrimoniaux remarquables). Ali se propõe a proteção do Patrimônio arquitetônico, urbano e paisagístico de cidades, vilarejos ou bairros. Para tanto, devem ser elaborados planos de proteção e de valorização, que são mais voltados para o urbanismo, ou planos de valorização da arquitetura e do Patrimônio. Aqueles setores já reconhecidos pela lei anterior foram incorporados à nova proteção, que já engloba mais de 860 sítios ou conjuntos urbanos.  

Uma vez estabelecido os planos de proteção e de valorização, qualquer intervenção dentro do sítio protegido é submetida à avaliação de um arquiteto com a formação específica (architects des Bâtiments de France). Esse é um ponto importante: o Estado se encarrega da formação desses especialistas, gerando maior uniformidade de procedimentos com relação às intervenções no Patrimônio. Há também a possibilidade de vantagens fiscais e de subvenção para as obras.

Na França, como no Brasil, a manutenção do Patrimônio tem altos custos, sendo muito dependente da ação estatal. Naquele país, há também o recurso ao apoio da iniciativa privada, seja através de subscrições públicas com a finalidade de se obter doações para obras específicas, seja através do mecenato por empresas. As subvenções a restaurações levam em conta o uso futuro dos monumentos protegidos, sendo maiores caso os imóveis venham a ser abertos ao público.

Em diversas áreas protegidas, os trabalhos de recuperação dos imóveis destinados à habitação podem utilizar recursos advindos de um sistema de subvenções para melhorias das edificações de uso habitacional em geral. Tais subvenções advêm de taxas aplicáveis aos aluguéis habitacionais privados, às residências secundárias, e aos imóveis vazios, aqueles que não são habitados depois de um certo tempo. Tais taxas são transferidas à ANAH – Agência Nacional para a Melhoria do Habitat que as aplica na recuperação desses imóveis.

Outras iniciativas de financiamento da restauração vêm sendo pensadas. Em 2011, o castelo Chambord registrou sua marca e, desde então, comercializa produtos com a mesma. Outra possibilidade seria o uso em bens de Patrimônio do chamado ticket mecenas, um valor adicional e voluntário da entrada, já usado em museus para a aquisição de obras de arte.

Um aspecto importante é a formação de mão de obra especializada na intervenção em bens de Patrimônio, uma carência forte em qualquer lugar. A Prefeitura da cidade de Bayonne, por exemplo, teve um programa de formação gratuita de mão de obra especializada em recuperação de imóveis, com duração de seis meses, destinado a pintores, marceneiros, canteiros e pedreiros. Os alunos deviam ser profissionais já engajados em alguma empresa ou autônomos e os cursos eram mantidos pela Prefeitura e por fundos empresariais de formação.

Essa rede de recursos e incentivos destinados às restaurações dos imóveis preservados, sejam eles públicos ou privados, marca uma das grandes diferenças do sistema de preservação francês para o brasileiro. Até o momento, salvo alguns incentivos fiscais criados por certas prefeituras, entre as quais a do Rio de Janeiro, e a possibilidade de uso da Lei de Incentivo à Cultura, há poucas fontes de recursos para a recuperação dos bens preservados. No Rio de Janeiro, uma inovação interessante é o Pró-Apac, em que a Prefeitura subsidia parcialmente algumas restaurações de fachadas, estruturas e telhados, além da acessibilidade, considerando que os mesmos são parte da paisagem urbana.

Mas, na maioria dos casos, nossos tombamentos e preservações têm sido apenas documentos legais que não garantem a efetiva integridade dos monumentos. Com tristeza, vemos bens tombados ou protegidos se descaracterizarem ou ruírem, sem que haja ações do poder público ou recursos para a sua proteção. Somente uma maior conscientização sobre o real valor dos nossos monumentos, no campo e nas cidades, poderá levar os poderes públicos a repensarem seus papéis no contexto da preservação do Patrimônio cultural, criando novos mecanismos de financiamento, incentivos fiscais, incentivos a usos habitacionais e obrigações dos proprietários.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

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