Roberto Anderson: A Traviata

Vinte e dois anos depois, enfim, La Traviata volta ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro

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Enfim, chegou o dia de assistir à ópera. Mais do que isso, vinte e dois anos depois, enfim, La Traviata volta ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Muito tempo de ausência de uma obra desse porte numa cidade que se acredita um polo cultural. Longe vão os tempos de bonança da Fundação Teatro Municipal, quando o casal de governadores da terra do chuvisco concordava em dotá-la com um orçamento até maior do que o da própria Secretaria de Cultura. Coisas curiosas aconteciam então.

Para chegar ao Municipal, civilizadamente, boa parte do público opta por utilizar o metrô. Infelizmente, essa preferência não é recompensada pela administração desse sistema de transporte, que fecha a entrada mais próxima ao teatro nos fins de semana. Isso obriga senhoras e senhores, em seus melhores trajes, a se deslocarem pela praça mal iluminada, com aspecto de abandono. Nesta temporada da Traviata dois cantores, que haviam acabado de participar do espetáculo, foram agredidos por assaltantes na Cinelândia.

No último fim de semana, a bela chegada ao teatro esteve obliterada por uma enorme tenda dedicada a atender pessoas que desejavam limpar os seus nomes, renegociando dívidas. Nada contra tal atividade, mas somente gestores incultos permitem esse tipo de equipamento gigante na vizinhança do principal conjunto de monumentos da cidade: o próprio teatro, a Câmara de Vereadores, a Biblioteca Nacional e o Museu de Belas Artes. O que dizem os órgãos de Patrimônio?

Apesar de ter negada a visão, a partir da praça, dos vitrais iluminados do teatro, das suas colunas coríntias, dos seus ornatos e da imponente águia dourada, subir a escadaria externa do Municipal é sempre uma grande emoção. Ali estão os grupos de senhoras vindas em vans que as retiram do provável isolamento que advém com a idade. Ali estão representantes da elite econômica carioca, tanto os que genuinamente apreciam um bom espetáculo, quanto aqueles que ascenderam mais recentemente e sabem o quanto pega bem assistir a uma ópera.

Dispersos pela escadaria também estão os amantes do canto lírico que necessitam ver ao vivo as óperas que tanto amam, da mesma forma como necessitam do ar que respiram. E também estão os artistas, e outras pessoas sem recursos, e sem acessos a convites, desejosos que um anjo apareça e lhes ofereça um ingresso que tenha sobrado. Lugar tão familiar no passado…

Adentrar o Theatro é uma experiência de maravilhamento. Mármores e pedras de tons variados, bronzes, esculturas, ornatos folheados a ouro, tudo muito rico, tudo muito nobre, a mais bela joia da cidade. A subida da escadaria central, com sua finalização bipartida, seus corrimãos de ônix, e o grande vão acima, terminado num vitral ladeado por pinturas, é sempre um ato que confere charme e grandeza ao mais simples dos mortais. Na era das redes sociais, essa subida se tornou incontornável, assim como a devida parada para fotos.

O que os frequentadores justamente maravilhados não percebem são as microfissuras nos mármores das paredes e dos pisos, resultado provável da trepidação provocada pela circulação do metrô e da antiga situação de tráfego intenso de ônibus na lateral do teatro. Afinal, as fundações dessa magnífica edificação são toras de madeira de lei, submersas no lençol freático da região. Essa trepidação, e a movimentação do edifício, já causaram, muitos anos atrás, a queda da balaustrada do foyer. Tudo agora restaurado, não há motivos para preocupação, não há riscos iminentes, só “sinais de expressão” de uma longa existência.

Se o espectador foi curioso, antes de entrar na sala de espetáculos, terá dado uma circulada pelo interior do teatro. E terá se deparado com o belíssimo foyer, onde a abóbada de berço e os tímpanos são decorados com pinturas magníficas de Eliseu Visconti. A pintura principal é a representação da música e utiliza técnicas de pontilhismo.

Se desceu a escada certa, terá encontrado o Salão Assyrio. A fantasia palaciana europeia agora abre espaço para um misto de referências à Pérsia, à Babilônia e à Assyria. Estão lá arqueiros, leões, os kerubs, que são seres alados, e fontes com Gilgamesh e o imperador Dario, tudo em cerâmica esmaltada, executada por finíssimos artesãos do passado. Uma pena que parte do teto, no lugar de ter a pintura decorativa recomposta, recebeu apenas um adesivo fotográfico na última restauração, a de 2008-2009.

Antes do início da função, e devidamente sentado, se possível nos assentos privilegiados da plateia e do balcão nobre, o melhor a fazer é observar as belezas da sala de espetáculos. À frente, o belo arco dourado que contorna a boca de cena, com seus medalhões e laços contendo feixes canelados. Na lateral, antes da boca de cena, estão os camarotes da presidência da República e do governador. Não têm bom ângulo de visão, mas estão em locais privilegiados para que os dignitários sejam vistos. Abaixo deles, os camarotes que se debruçam sobre o fosso da orquestra. Na última restauração foram cortados para dar mais espaço à orquestra, mas não tiveram seus ornatos recompostos.

Acima, a pintura também de Visconti para o friso do proscênio, datada de 1936, quando a boca de cena original foi alargada. Por trás da pintura que decora o proscênio, há outra escondida, do mesmo artista, feita para a boca de cena original, apenas redescoberta na última restauração. No mesmo momento em que ocorreu o alargamento da boca de cena, a estrutura interna do teatro, em pilaretes metálicos, foi substituída por outra em concreto armado. Vigas gigantes de concreto agora passam escondidas por cima do plafond da sala de espetáculos, delicadamente decorado com a pintura As Horas, de 1908, do mesmo Visconti.

Já toca o terceiro sinal, o espetáculo vai começar. A luz da sala se apaga, os músicos dão a última afinada nos instrumentos, o maestro, sob aplausos, assume o seu lugar no fosso da orquestra, e soam os primeiros acordes. A produção está muito bem cuidada, com o coro, o ballet e a orquestra em ótima forma. A soprano Ludmila Bauerfeldt, no papel de Violetta Valéry, encanta. Os figurinos e as coreografias idem.

No segundo ato há uma certa estranheza com a simples cortina com plantas trepadeiras fazendo as vezes da casa de campo do casal de enamorados. Bem distante do suntuoso cenário da última produção, quando havia um belo jardim na casa de Violetta. Foi por ele que o então médico de plantão no palco do teatro se equivocou de caminho, e adentrou a cena. Curiosidades de um palco centenário.

Também a inversão temporal do último ato, quando Violetta é apresentada como uma visão fantasmagórica, já falecida, cria um certo estranhamento em relação ao que é cantado, onde ela ainda tem um sopro de apego à vida. Talvez, uma concessão do diretor ao expressionismo alemão, assim como a dançarina de braços desnudos que aparece no segundo ato, na cena em que a protagonista é destratada por Alfredo.

Ao final, a plateia oferece seus aplausos calorosos e merecidos aos artistas. Num ato incomum, são chamados ao palco alguns trabalhadores dos bastidores. Lá estão, entre outros, Leila, a chefe das camareiras e Divina, a responsável pelas perucas das personagens. É justo, sem eles não há espetáculo. E sem mais óperas, concertos e ballets o Rio é menos Rio. Obrigado Theatro Municipal, queremos mais.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

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