Durante anos trabalhando no Centro do Rio de Janeiro, meu trajeto de ônibus passava pela rua do Catete. E, sendo adepto convicto dos sistemas de transporte público, isso significava aceitar certos perrengues. Mas, se fosse possível viajar sentado, e se o ar-condicionado estivesse funcionando, curtir a cidade pela janela era sempre um prazer. Ali na altura do Ciep Tancredo Neves, me deliciava com a visão dos sobrados que restavam do lado par da rua. O lado ímpar, naquele trecho, havia sido demolido para a construção do metrô, época em que se destruía o passado sem dó. Hoje essa destruição permanece, mas é mais envergonhada, silente. Mesmo assim, constante.
Em meio à fileira de sobrados daquele trecho de rua, havia um que particularmente me encantava. Era uma miniatura de um palacete barroco francês, uma obra do ecletismo, essa linha estética da arquitetura tão atacada pelos modernistas. Lá estava o pequeno sobrado com ares de superioridade entre seus pares. O que lhe conferia essa distinção era o telhado afrancesado em ardósia, com inclinação capaz de repelir a neve tropical. Havia também uma torre encimada por pináculos e janelas circulares de chapa metálica, salientes da superfície do telhado, à maneira das mansardas parisienses.
Essa cobertura era todo o charme da edificação, já que sua fachada era semelhante às dos sobrados vizinhos. Mas ela ruiu. Foi consumida pelo fogo recente que a destruiu, na rua do Catete 48. Mais um sobrado destruído na cidade. Diz-se que andava invadido por população de rua. Se esse era o caso, o incêndio era uma questão de tempo. Como pode uma cidade não dar atenção ao seu rico Patrimônio?
É preciso deixar a imaginação fluir para tentar entender como aquela pequena joia foi erguida no Catete. Recriar os sonhos de grandeza de seu construtor. Ali perto, estava o Palácio que era a residência do presidente da República. Construir uma miniatura de um palácio francês certamente atrairia a atenção dos poderosos. A admiração de quantos teria captado? Quem teria se hospedado no seu sobrado? Que saraus ali teriam sido promovidos?
A eternidade, a permanência, seria a recompensa desejada, e merecida, pelo esforço do construtor. Mas não, no século XXI o pequeno palacete ruiu ante um incêndio. Quem terão sido os herdeiros? Por que brutalidade da alma não seguiram cuidando do imóvel? Ou que catástrofe financeira teria se abatido sobre a família a ponto de não mais seguir cuidando do legado de um antepassado sonhador?
Ainda não tive coragem de ir ao local para ver a ruína desse bem que tanto me encantava. Já sei que o caminho até o Centro não será o mesmo. Uma lacuna na paisagem estará ali gritando que o mundo a que me afeiçoei vai desaparecendo.
Alguns privilegiados viajam diversas vezes às belas cidades europeias, como Paris, Londres, Amsterdam ou Roma. E sempre reencontram os marcos arquitetônicos que a todos fascinam. No Rio, vi desaparecer o Palácio Monroe na Cinelândia, o Solar do Visconde de São Lourenço na Lapa, a Fábrica da Brahma no Catumbi, os armazéns da Área Portuária, e uma infinidade de pequenos palacetes e sobrados, consumidos pela ação de proprietários embrutecidos ou pela omissão dos governos. Bem próximo ao pequeno palacete que ruiu, está outro maior, o São Cornélio, em longo processo de arruinamento que nada parece ser capaz de interromper.
Percebo que o pequeno palacete do Catete ocupava um lugar de distinção nos elementos da minha paisagem particular. Ele se foi e o fato de saber que não mais existe é um incômodo de grande proporção. Ver o seu mundo desaparecer, perder referências, será isso também morrer? Talvez sim. Morre-se lentamente quando as coisas à sua volta, as pessoas e as ideias deixam de fazer sentido. Mas aqui retira-se violentamente elementos da paisagem que marcam nossas vidas. É triste.
Ao longo dos anos, o Rio de Janeiro perdeu muitas de suas obras arquitetônicas mais valiosas, substituídas por projetos de modernização ou simplesmente abandonadas. Cada edifício demolido não é apenas uma perda física, mas um pedaço da alma da cidade que desaparece.
O Palácio Monroe, por exemplo, construído para a Exposição Internacional de Saint Louis em 1906, foi demolido em 1976, mudando para sempre a paisagem do centro da cidade.
O Morro do Castelo, considerado o berço do Rio, foi destruído na década de 1920 para dar espaço à Exposição do Centenário da Independência, levando consigo um enorme pedaço da história local.
O Mercado Municipal da Praça XV, um símbolo do comércio do início do século XX, foi demolido em 1960 para abrir caminho para o Elevado da Perimetral, que também já não existe mais, deixando um legado de perdas irreparáveis.
Esses exemplos lembram a importância de preservar o patrimônio arquitetônico para manter viva a essência e a identidade da cidade.
Sim, isso também é morrer.
Moro do lado, tava realmente invadido e agr ruiu, infelizmente. Há quem odeie ter pobres aqui no bairro, acho um elitismo e canalhice, mas se temos pessoas em situação de vulnerabilidade, sem moradia, que a prefeitura prepare espaços destinados a recebe-los de forma digna. O que não da é o bairro ficar largado como está em alguns pontos.
Triste demais.
E tem gente da elite que acha lindo Paris, Roma …. Mas não dão a menor bola para o patrimônio daqui…
Boa Noite !
Professor, eu gostei muito da matéria sobre a falta de respeito que o governo tem com o patrimônio da cidade.tive a oportunidade de ir a Europa e ver o esforço para preservar vários imóveis e monumentos….Fico por demais triste quando vejo a destruição de tanta coisa nela na nossa cidade.
Desculpe os meus erros…hoje particularmente estou saudosista e com um problema da visão se acentuando…isso é outra matéria…rs
Uma boa noite e continue nos dando o.prazer de ler seus artigos.
Texto melancólico e lindo!!! Espero que tantos outros imóveis públicos invadidos aqui no Centro Histórico do Rio, não tenham o mesmo destino.
Mas com as “forças do mal” invadindo e ocupando nossas joias arquitetônicas, sem nenhuma repressão, não podemos esperar outra coisa.