Nesta semana Ipanema perdeu uma de suas garotas. Na juventude, Márcia Coutinho morava ali na Bulhões de Carvalho, frequentava a praia no píer e tinha uma turma imensa de amigos, onde o seu sorriso franco dominava. Antes de ser usual se locomover de bicicleta na cidade, muito antes das ciclovias, Márcia já rodava com a sua pela Vieira Souto. E pagava o preço do pioneirismo: era vítima dos machões de carro querendo lhe passar a mão. Claro que palavrões voavam de volta. Bem antes também da onda de academias, dos programas de TV de Jane Fonda, Márcia já malhava, destoando dos amigos, ainda naquela de ser magrelos e relaxados.
No cursinho de vestibular a gata chegava de moto com um amigo, sempre um pouco atrasada. Causava ao entrar na imensa sala de aula, apinhada de sofridos vestibulandos. Com seus longos cabelos negros, às vezes ainda molhados, sua calça Saint Tropez, aquela da cintura baixa, e sua bata branca, sem qualquer esforço ou afetação, imediatamente se fazia notar. Contudo, ela era das mais estudiosas e foi com facilidade que passou para a Faculdade de Arquitetura da UFRJ.
Encontrá-la pelos corredores da faculdade, poder sentar no chão, encostados nos brancos pilotis, reclamar do excesso de trabalho passado pelos professores, combinar de fazê-los juntos na sua casa, onde Dona Rosa serviria um refresco, eram alguns dos prazeres do curso. Márcia era a amiga, a pessoa que nunca faltava àqueles a quem se afeiçoava. Era a rainha da turma mais chegada dos amigos. Márcia contava das suas viagens lisérgicas, do prazer dos fins de semana no sítio em Maricá, e falava da vontade de ter filhos. Ela sempre foi um misto de hippie e certinha. Era dona de um dos melhores cadernos da faculdade, franqueado aos amigos em atraso com as matérias.
Os estudos a levaram ao mestrado em planejamento urbano. E daí a uma profícua atuação nessa área na Prefeitura do Rio. Foi quando se aproximou do tema favela, trabalhando na inclusão delas nos mapas da cidade, onde até então eram ausentes.
Um desafio maior a levou à Light, o de regularizar o fornecimento de luz em favelas, com a consequente regularização das ligações e contas. Ter uma conta de luz no seu nome é um bem enorme para moradores de comunidades. Muitas vezes é o único documento de comprovação de endereço.
Márcia andou pelas favelas mais esquecidas, as recém-constituídas, aquelas em que o poder público fazia questão de não ver, e que depois seriam ocupadas pela guerra mortal de facções do crime organizado, e pela milícia. Após alguns anos, ela voltou à Prefeitura, onde atuou na Secretaria Municipal de Habitação em projetos voltados para a urbanização de favelas e na Secretaria de Meio Ambiente. Na maior parte da sua carreira profissional, Marcia Coutinho esteve dedicada ao serviço público e ao trabalho de pensar soluções para os problemas da Cidade do Rio de Janeiro, que ela tanto amou.
Márcia teve os namorados e os maridos que quis, teve seus filhos, construiu sua casa na encosta da Cardoso Júnior, teve seus netos, distribuiu amor e alegria para tantos quantos dela se aproximaram. Nos últimos anos cultivou a paixão pela literatura, num clube de leitura. E retomou a paixão pelos percursos de bicicleta. Foi num desses, no meio de uma estrada na Europa, que conheceu o seu último amor.
Marcia se foi nesta semana de intensas atividades na cidade, pontos facultativos, Rock in Rio, turistas pelas ruas e efeitos da crise climática. Foi cedo demais. As saudades de todos os que com ela conviveram profissionalmente e de todos os inúmeros amigos que fez pela vida já são imensas.