Roberto Anderson: Boa pessoa

'Você se sente bem por ter votado em candidatos que favorecem os mais carentes. Mas não entende como a ajuda do Estado não chega justamente a esses desesperados do seu caminho'

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O dia está agradável, você está numa parte bonita da cidade, e aproveita o momento de calma para ir ao restaurante. Sentado na varanda, você dá uma garfada no bife suculento. Mas aí aparece um pedinte, querendo um trocado. Ele está de olho na batata frita que acompanha o seu bife, e até pede uma. Você se incomoda, o garçom espanta o pedinte, e o gosto da carne parece que se esvai.

O seu carro para no sinal e já lá vem um cara correndo, colocando um par de sacos de balas no seu espelho lateral. Às vezes são batatas chips sabor churrasco. Ele é esforçado, corre uma meia maratona por dia. Mas é raro você querer comprar alguma coisa. Ou vai contra a sua dieta, ou é algo que não se encaixa no conjunto ar-condicionado e música do carro. Também à frente está o malabarista, que já desceu do tamborete e vem passando o chapéu. O sinal abre e você vai embora.

Você sai da academia se achando, tendo cumprido toda a série que lhe levará a ter os músculos que você inveja nos outros, quando se depara com um sujeito esquelético e maltrapilho lhe pedindo um pão. Ele lhe chama de pai, mas você não quer ver, passa batido sem dar atenção. 

Você entra no banco para sacar um dinheiro no caixa eletrônico. Tudo é moderno e eficiente. A agência é limpa e clara. A sua digital é reconhecida, você saca o que precisa, paga contas e transfere recursos para o filho. Ao sair, encontra um deficiente físico a quem lhe falta uma perna. Ele vende paçocas, mas ele não está ali exatamente para vender. Ele pede uma ajuda na forma de uma compra. O dinheiro que você sacou do banco está em notas altas. Além disso, as paçocas anulariam o esforço na academia.

No vagão do metrô a voz que pede que você cuide daquele meio de transporte é sobrepujada pela do desempregado que se desculpa por interromper o sossego da sua viagem. Um pouco mecanicamente, ele expõe as dificuldades por que tem passado e a situação da família que o espera em casa. Ele pede um trocado qualquer, algo que lhe dê alguma esperança. Ele vai até um, até o outro, e mal consegue alguns centavos. Quando ele se aproxima, você abre espaço para ele passar. 

No caminho até o seu condomínio, que é cercado e munido de câmeras de vigilância, você encontra uma senhora com duas crianças, que lhe pedem algo para comer. Você pensa que é uma maldade que essas crianças estejam na rua, obrigadas a conviver com tantos nãos. Se sente culpado, mas lembra que já ajuda mensalmente uma instituição para jovens necessitados. Você imagina que se der um trocado contribuirá para manter a família nas ruas, as crianças acomodadas em pedir. Você lembra que crianças são crianças e não têm culpa das confusões dos pais, mas vai embora sem nada dar.

Um rapaz franzino, que também vende paçocas, pede que lhe compre uma nova sandália. Ele mostra que a dele está realmente arrebentada. Humilde, ele ainda não aderiu aos vocativos pai, padrinho e patrão, que as ruas agora têm para estranhos. Candidamente, ele lhe chama de tio. Por hábito, você diz não. Depois se pergunta quando foi que ficou assim, insensível. 

Você raciocina que se você der ou não der, pouco importa, porque acredita que não será a sua ajuda o que mudará a situação daquelas pessoas. Você sente raiva de ser confrontado com essa situação. Você gostaria de viver num lugar diferente, sem essa pobreza que se esfrega na sua cara. Mas, você vive aqui, nasceu aqui, sua terra é essa, com todas as suas belezas e mazelas. 

Você se sente bem por ter votado em candidatos que favorecem os mais carentes. Mas não entende como a ajuda do Estado não chega justamente a esses desesperados do seu caminho. Na juventude, você imaginou um país melhor, lutou por ele, mas parece que ele nunca chega. Você sabe que se olhar os dados com calma, verá que as coisas até melhoraram. Mas a miséria das ruas daqueles tempos ainda persiste. Agora com alguns sujeitos mais destruídos. O crack se espalhou muito. 

Você anda chateado com o assédio da pobreza por onde anda. A TV mostra a calamidade ambiental que se abateu sobre o Rio Grande do Sul. Você sabe que o agronegócio desmatou, que o governador local flexibilizou as regras de proteção ambiental, e que o homem comum se instalou onde não devia. Mas você ainda deseja ajudar o próximo e faz um pix para a conta divulgada pelos voluntários mais envolvidos. Você sabe que você é uma boa pessoa. 

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

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