Roberto Anderson: Buraco 467

'Aqui é assim, um constrói tapando a vista do outro, fechando a entrada de ar, e ganhando nova vista na laje de cima'

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Eu moro no buraco, no buraco de número 467. A entrada, meio fora de esquadro, tá pintada de verde. Quero dizer mais ou menos pintada né, que um pouco de esperança nunca faz mal. Ao sair da rua, eu vou descendo escadas que o diabo talhou e a luz do dia vai ficando pra trás. A minha casa (ou será minha toca?) é lá pelo meio, onde o ar já escasseia e os insetos passeiam livres, donos do lugar.

Quem começou a construir a nossa casa foi a bisa, quando era moça e tinha forças para lavar roupa pra fora. Minha avó trocou as madeiras por tijolos e meu pai bateu a laje que me cobre e as que estão acima. A bisa dizia que antes tinha vista, e que era bonita. Podia ver o mar e as pedras. E os poucos carros que passavam lá embaixo. Depois, os vizinhos foram construindo de qualquer jeito e a luz do dia foi desaparecendo da nossa janela.

Aqui é assim, um constrói tapando a vista do outro, fechando a entrada de ar, e ganhando nova vista na laje de cima. Que também será tapada pelo puxado do vizinho, que acabou de bater uma laje nova. Não tem regra, vale a lei da necessidade. Foi assim desde o começo. Quando a bisa chegou, assentou suas madeiras numa clareira que abriu na mata que estava livre, acima dos barracos já construídos. E outros vizinhos foram chegando, fazendo a mata recuar cada vez mais, até quase desaparecer lá pra cima.

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Todo mundo constrói usando o que consegue comprar e com os conhecimentos que tem. Um que trabalha em obras diz quantos ferros tem que usar. O concreto é no sentimento, e na sabedoria, porque acho que aqui todo homem já esteve em obra. E todos ajudam a virar o cimento e assentar os tijolos. Bonito não fica, mas também não cai. Era bom se tivesse orientação de engenheiro, de arquiteto. Há até uma lei sobre isso, de assistência técnica a quem precisa construir. Mas aqui ela não chegou.

A minha luz é de gato. Gato que os caras do movimento estão querendo cobrar. Estão aprendendo com os milicianos. Antes ela era legalzinha e tal. Eu usava a conta pra comprovar o endereço e poder fazer crediário. Mas agora nem adianta, tô encalacrado mesmo, com o nome todo sujo na praça. A água sempre foi gato.

O que incomoda é viver nesse buraco quente, abafado. O pai teve tuberculose, demorou a curar. Quase que ele foi. Agora tá bem. Mas eu é que ando com essa tosse. Jogo game de guerras intergaláticas, mas essa minha tosse é de Dama das Camélias. Dá muito aí entre os moradores desses buracos. Se ver alguém tossindo muito, pode desconfiar. Essa semana vou no posto, pra ver o que é.

Como todo mundo, eu trabalho lá embaixo. Já fiz tanta coisa, que até perdi a conta. De call center, onde até o tempo pra ir ao banheiro era controlado, a garçom e segurança. Minha carteira de trabalho tá esfarrapada de tantas entradas e saídas. E de tanto mostrar pra polícia. Agora tô só nos bicos. Alguns dias tem, outros, nada. Eu ando pelas ruas deixando currículos, e sento nas praças pra descansar. Quando dá, como uma quentinha ou um sanduba. Chato é voltar sem ter conseguido nada.

Na entrada do buraco já teve uma árvore. O toco dela tá lá, no meio do degrau, cinza como tudo o que se pisa. Verde agora só a parede pintada. E a esperança de que um dia a vida vai melhorar.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.
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