Roberto Anderson: Celulares ao lago

Arquiteto e urbanista fala de uma ida ao teatro mais famoso do Rio de Janeiro

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Foto: Roberto Anderson

Uma voz anuncia os apoios oficiais, os nomes dos artistas principais e os cuidados em caso de emergência. A luz vai baixando aos poucos e lá do fosso da orquestra começam a subir os primeiros acordes da abertura. A música nos prepara, tensiona as emoções para o que virá a seguir. Está começando O Lago dos Cisnes, com o corpo de baile e a orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. 

São muitas as histórias e mudanças que cercam essa estreia. Dois anos de pandemia deixaram vazio o teatro recentemente restaurado, os artistas afastados uns dos outros, os técnicos em suas casas, sem poderem exercitar sua profissão, e o público saudoso. Quantos, lá e cá, de cada lado da boca de cena, não terão adoecido ou perecido? Agora é a hora do reencontro, de matar as saudades, de religar os refletores, de fazer soar os instrumentos. 

Há também as histórias pessoais dos artistas. Do menino que saiu de Cabo Frio e foi parar em Moscou, se tornando primeiro bailarino do Teatro Bolshoi. Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, ele se viu obrigado a tomar uma decisão drástica, saindo às pressas do país e da companhia que o acolheu, para se aventurar por outros palcos do mundo. Aqui, a cidade que ainda não o havia visto dançar, terá esse comovido reencontro com David Motta. E há a primeira bailarina, Claudia Mota, outro dia no comando da comissão de frente de uma Escola de Samba, agora transmutada em cisne. Sua emoção cresce, por ter anunciado que esta seria sua última temporada no papel de Odile-Odette.

Já conhecemos a história que irá se desenrolar diante dos nossos olhos. Mas o prazer de acompanhar esse drama sempre se renova. Sabemos que o príncipe recusará as pretendentes que lhe são sugeridas, sabemos que, ao se embrenhar na floresta, encontrará cisnes no lago e se encantará por um deles. Sabemos do feiticeiro e do engano a que o príncipe será levado. Mas queremos rever cada momento dessa trama, sentir a excitação do príncipe, o temor do cisne, sua hesitação, suas reservas sendo quebradas, e a sua entrega num dueto apaixonado. Tudo isso a bailarina nos transmite com pequenos gestos das mãos, pelo oscilar dos braços, pelo alçar das pernas e por leves meneios da cabeça. 

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Nos alegramos pelo tão aguardado quarteto dos pequenos cisnes, suas pernas se movendo em rapidez e sincronia e suas cabeças circulando em conjunto. E pelos grandes cisnes que esvoaçam pelos quatro cantos do palco. E nos surpreendemos com as sutis mudanças de posição dos demais cisnes, que se enfileiram, viram de lado, esticam uma perna, mudam os braços, circundam o casal em redemoinhos e se entrecruzam em sintonia pelo palco. Da mesma forma, já conhecemos, mas queremos rever, as danças dos convidados do baile, as danças de caráter dos países. E o que dizer do bobo da corte, interpretado pelo sempre magnífico Cícero Gomes?  Ele encanta e cativa a plateia e demonstra uma técnica absolutamente invejável que empolga os que o assistem. 

Não menos bela é a música de Tchaikovsky. A abertura já é carregada de dramaticidade, mas também de romantismo. Sentimento esse que transborda, nos arrebata nos duetos do príncipe com Odette tornada cisne. Não há como não pensar na grandeza da cultura russa em contraposição com uma história de violências, jugo de tiranos, sonhos desfeitos de igualdade socialista e conflitos com povos vizinhos, como a atual guerra e suas barbáries.

Nesse longo período em que o público esteve afastado do querido teatro, além da falta do prazer de ver um espetáculo, parece ter havido também um processo de deseducação coletiva. Um grave sintoma disso é a insistência de tantos em consultar seus celulares durante o espetáculo. Novos selvagens, sequer desconfiam o quanto a luz azulada de seus celulares incomoda aqueles que tentam estar imersos no Lago. Não conseguem se concentrar na ação que transcorre no palco, ou experimentar em sua plenitude as sensações que dali emanam. Ação essa demasiadamente analógica, a exigir sofisticados níveis de interação emocional para quem tanto se acostumou a mensagens, áudios e vídeos de vida efêmera.

Também a chegada e saída do Theatro Municipal do Rio de Janeiro continua apresentando problemas que já poderiam ter sido superados. O projeto Área de Excelência Urbana, da Prefeitura, buscou no início de 2021 melhorar as condições físicas da Cinelândia, consertando pisos e mobiliário urbano, recuperando a iluminação pública e controlando a permanência de população de rua no local. Mas, em tão pouco tempo, muito disso já se perdeu. O público atravessa a praça às escuras, já que muitos postes estão com suas lâmpadas queimadas. Além disso, o metrô, surpreendentemente, fechou o acesso mais próximo ao teatro, obrigando as pessoas a caminharem até a esquina do Cine Odeon. Ao fim do espetáculo, em horário mais avançado, não é algo que deixe as pessoas muito felizes. Por sorte, a música que ainda ecoa nos ouvidos e a lembrança dos belos cisnes nos assegura a paz.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.
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