Roberto Anderson: Chile, uma Constituição para a cidadania, a diversidade e a ecologia

'Diferentemente da Constituição brasileira, que em seu preâmbulo invoca a proteção de Deus, a proposta de Constituição do Chile abre com a frase “Nós (no feminino e no masculino)'

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Diferentemente da Constituição brasileira, que em seu preâmbulo invoca a proteção de Deus, a proposta de Constituição do Chile abre com a frase “Nós (no feminino e no masculino), o povo do Chile, formado por diversas nações, nos outorgamos livremente esta Constituição, acordada num processo participativo, paritário e democrático”. E já no Artigo 1 anuncia que o Chile é um Estado de direito social e democrático, e que é plurinacional, intercultural, regional e ecológico.

Por aí se vê que o novo texto está em dia com uma série de debates atuais, incorporando a interculturalidade e a ecologia. Também as questões de gênero e da comunidade LGBTQIA+ são atendidas. Assim, o texto indica que o Estado promove uma sociedade onde mulheres, homens, diversidades e dissidências sexuais e de gênero participem em condições de igualdade. Reconhece as diversas formas e expressões de famílias. Propõe que 50% dos cargos de todos os órgãos do Estado e empresas públicas devem ser ocupados por mulheres. E que essa prática deva ser incentivada no âmbito das empresas privadas.

Onze povos e nações indígenas do país são reconhecidos e suas línguas tornadas oficiais nas áreas em que habitam ou em que representem parcela importante da população. São reconhecidos também os seus direitos à autonomia, ao autogoverno, à cultura e cosmovisão próprios, às suas línguas, às suas medicinas tradicionais e aos seus territórios. A representação deles na Câmara de Deputadas e Deputados fica garantida por uma participação de no mínimo 20 das 154 cadeiras.

É interessante observar como são tratadas questões referentes ao meio ambiente, às cidades e à habitação. Além da definição do Chile como um Estado ecológico, a proposta de nova Constituição chilena inova ao reconhecer os direitos da natureza: “A natureza tem direito a que se respeite e proteja sua existência, a sua regeneração, a sua manutenção e a restauração de suas funções e equilíbrios dinâmicos, que compreendem os ciclos naturais, os ecossistemas e a biodiversidade”.

A nova Constituição garante a proteção de ecossistemas específicos, como geleiras e pântanos, Afirma ainda que toda pessoa tem direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, ao ar limpo, e ao acesso responsável e universal a montanhas, beiras de rios, mar praias, lagos, lagunas e pântanos. E propõe o fim de monopólios de recursos naturais (o atual mercado de água é privado).

Para a proteção da natureza e do meio ambiente, são elencados os seguintes princípios: a progressividade, ou seja, o não retrocesso, a precaução, a prevenção, a justiça ambiental, a solidariedade geracional, a responsabilidade e a ação climática justa. Com relação à crise climática e ecológica, o Estado deve adotar ações de prevenção, adaptação e mitigação dos riscos, das vulnerabilidades e dos efeitos. É criada a Defensoria da Natureza e o Estado deve fomentar a produção agropecuária ecologicamente sustentável.

A nova Carta afirma que o direito à cidade e ao território é um direito coletivo, voltado ao bem comum, e reconhece a função social e ecológica da propriedade. Assim toda pessoa tem o direito de habitar, produzir, usufruir e participar em cidades e assentamentos humanos livres de violência e em condições apropriadas para uma vida digna. É interessante notar que apenas a função social da propriedade é reconhecida na Constituição brasileira. O Estado chileno deverá também garantir a participação popular nos processos de planejamento territorial e nas políticas habitacionais.  

Com relação à habitação, a nova Carta afirma que toda pessoa tem o direito a uma moradia digna e adequada e que o Estado poderá participar do projeto, da construção e da reabilitação da moradia, especialmente para as pessoas de menor poder aquisitivo. Essa proposta se assemelha à nossa Lei 11.888/2008, que propõe a assistência pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social, infelizmente pouco aplicada. O texto chileno indica ainda que o Estado deverá administrar um Sistema Integrado de Terras Públicas, voltado para fins de interesse social.

A ocasião da elaboração de uma Constituição é interessante para se perceber como uma sociedade vê e deseja sua nação. A brasileira foi realizada sob o espectro da ditadura militar recém terminada, com constituintes do século XX. E depois disso veio sendo remendada ano a ano.

Em maio de 2021 o Chile elegeu uma Assembleia Constituinte. Assim, se encerraria um triste capítulo da sua história, com a substituição da Constituição outorgada pelo ditador Pinochet (1973-1990). Essa eleição, que trouxe muita esperança, se deu após manifestações de rua, em 2019, por mais igualdade e melhores condições de vida, e que envolveram milhares de pessoas. A nova Constituição foi redigida por um número paritário de homens e mulheres, com a reserva de 17 lugares para 10 povos indígenas do país.

Ela agora está pronta, mas corre riscos de não ser aprovada. Diferentemente do que ocorreu no Brasil, no Chile, após a elaboração do texto pelos constituintes, o mesmo será submetido a um plebiscito em 04 de setembro. Como as maiorias e consensos políticos mudam, a correlação de forças que elegeu os constituintes talvez já não mais exista. Sem a aprovação da Constituinte, o Chile corre o risco de mais instabilidade política. Seria desastroso para o país e uma pena a perda de um texto tão inovador.

Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

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