Roberto Anderson: Dois teatros e muitas lembranças

'Estamos no Metropolitan Opera, que faz parte do Lincoln Center. No palco, a praça da cidade se enche de artesãos, mulheres trabalhadoras e outras festeiras'

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Vestidos com ternos de uniforme, e fazendo um trabalho extra, os lanterninhas, que provavelmente são artistas ou estudantes, indicam às pessoas os seus lugares e as conduzem até lá. É aquele momento de grande excitação, pedidos de licença, trocas de olhares e observação de quem são os demais presentes no teatro. Casais conversam, senhoras leem os programas que lhes foram entregues e a constante chegada de mais gente anima o ambiente.

Um grupo de jovens, rapazes e moças, todos magros, todos com jeito de bailarinos, buscam seus lugares no fundo, que é onde geralmente se situam as cadeiras distribuídas aos estudantes de dança e de teatro. Os aplausos mais animados ao fim do espetáculo, e os gritos dirigidos às estrelas principais, sempre vêm deles.

A luz do teatro baixa, os últimos avisos são dados e a orquestra, que afinava seus instrumentos silencia. O maestro adentra o fosso, aplausos antecipados lhe são oferecidos, e faz-se o momento de calma e expectativa pelo que virá. Os primeiros acordes da abertura de Romeu e Julieta, de Prokofiev, preenchem a sala. Dão início à construção da narrativa do grande e trágico amor que marcou Verona.

Estamos no Metropolitan Opera, que faz parte do Lincoln Center. No palco, a praça da cidade se enche de artesãos, mulheres trabalhadoras e outras festeiras. Patrícios, filhos das boas famílias, farreiam, galanteiam e se provocam, até que uma encarniçada luta de espadas toma conta de tudo. O som das lâminas, batendo umas nas outras, acompanha o ritmo acelerado da música. Soldados chegam para acabar com a confusão.

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De frente para a cena, lembranças vêm aos borbotões. O palco agora é outro, o do David H. Koch Theater ali ao lado, no mesmo conjunto cultural, mas muitos anos antes. O espetáculo é o mesmo Romeu e Julieta, com a mesma música, apenas o coreógrafo é diferente. Na coxia, o soldado que lidera um grupo de outros soldados, prontos para entrar em cena e desfazer a luta de espadas, sou eu. O papel é pequeno, o que se chama de comparsaria, mas a emoção é enorme.

Também pudera, aquele é um dos palcos mais respeitados do país, onde Balanchine brilhou com suas criações, a casa do New York City Ballet. A companhia da noite é o conhecido Joffrey Ballet e entrar em cena, qualquer que seja o espetáculo, é sempre emocionante. Nos momentos em que a cena pouco exige do figurante, é possível olhar a plateia, sentir sua respiração, ouvir sua reação ao que se passa no palco. Lá da galeria, alguém o estará fitando, por um instante esquecendo Romeu, e observando o soldado.

No ensaio geral as coisas não saíram a contento. Como, até ali, os soldados haviam ensaiado separados dos demais bailarinos, ao me deparar com a intensa e ruidosa luta de espadas à frente, refuguei, sustando a entrada poderosa da guarda que apartaria a briga. Bronca tomada do ensaiador, combinações acertadas, e a rota dos soldados voltou a fluir. No compasso certo, eles passam por debaixo de uma ponte cenográfica e, ante a sua presença, os brigões vão se afastando dando lugar agora ao Príncipe de Verona, que dará um ultimato às famílias, para que deem fim àquela disputa sangrenta.

A temporada do espetáculo no teatro deve ter durado duas semanas, e a noite principal teve Marcia Haydée e Richard Cragun nos papéis principais. Mesmo sendo apenas um soldado, eu sabia que, dividir a cena com aqueles artistas, era algo para jamais esquecer. Antes que as cortinas se abrissem, um pouco acanhado, cheguei perto de Marcia e lhe confidenciei que também era brasileiro. Tietagem ligeira de quem se sentia ligado à estrela principal, só por ter a mesma nacionalidade.

No palco do Met, o drama caminha para o seu desfecho. O desencontro levou Romeu a acreditar que Julieta está morta. Esta, ao acordar e ver que ele havia tirado a própria vida, por não poder viver sem seu amor, busca na adaga a morte que a unirá ao seu amado. Completa-se o destino trágico que o Bardo traçou para os jovens apaixonados. A plateia devolve aos artistas toda a emoção que eles lhe entregaram no palco. Gritos de bravo, urros e mais aplausos são dirigidos às estrelas principais. Os soldados não vêm para os agradecimentos. Fecham-se as cortinas.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.
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