Choveu torrencialmente no litoral paulista no domingo de Carnaval. No entanto, chuva torrencial, um fenômeno comum em boa parte do território brasileiro, se tornou um conceito incapaz de definir o que ocorreu. Foi um dilúvio concentrado em poucos pontos. Choveu mais do que 600 mm num único dia, o maior registro no país até então, e o dobro do esperado para aquela área nessa época do ano para um mês inteiro. Por falar em expectativas de volumes de chuva, será preciso repensar esses parâmetros. Eles subiram muito. A crise climática está aí, é uma realidade, gerando catástrofes e mortes. Muito triste, mas poderá ficar pior se não adaptarmos nossas cidades.
O presidente Lula sobrevoou as áreas de desastre. Na entrevista em que concedeu em seguida, além de oferecer apoio material e solidariedade aos moradores dos municípios atingidos, ele pediu que não sejam mais construídas casas nas áreas passíveis de serem afetadas por novos deslizamentos e enchentes. Aí está a síntese do imenso programa que temos pela frente: mapear as áreas mais suscetíveis a desastres, adaptar os planos locais à nova realidade de crise climática, e realocar as moradias atualmente em áreas de risco.
Angra dos Reis, Rio de Janeiro, Niterói e São Gonçalo em 2010, Friburgo em 2011, Niterói em 2018, Bahia em 2021, Santa Catarina, Recife, Angra dos Reis e Petrópolis em 2022, o litoral de São Paulo em 2023, os eventos extremos, com perdas de vidas, se sucedem com cada vez maior frequência. A crise climática não só traz ameaça às áreas urbanas próximas ao mar e aos rios, já que o nível dos oceanos deverá subir, mas também às áreas de encostas. Ali, os volumes crescentes das chuvas tendem a provocar grandes deslizamentos, com perdas de vidas e de bens materiais.
Outro fator a ser considerado é a diferença de condições entre as classes sociais para enfrentar tais eventos extremos. O caso das cidades litorâneas paulistas exemplifica essa situação. As áreas entre o mar e a rodovia Rio-Santos, portanto mais desejadas e mais caras, sofreram menos. Já as áreas acima da rodovia, mais íngremes e mais próximas da Mata Atlântica, são aquelas mais ocupadas por pessoas mais pobres, e foram as mais atingidas. A preocupação com tais circunstâncias é o que se chama justiça ambiental, ou justiça climática. A discussão sobre o problema precisará considerar a maior vulnerabilidade locacional das pessoas com menos recursos.
Um grande entrave a ser enfrentado é a falta de preparo técnico das prefeituras para lidar com essa nova realidade, e o imediatismo dos políticos. Eles, em geral, são pouco afeitos a planejar o desenvolvimento futuro de suas cidades, e a cumprir os planos, quando estes são realizados. Há também a recusa de vizinhanças mais ricas em receber projetos de habitação social. O prefeito de São Sebastião já havia sido alertado em 2020, pelo Ministério Público Estadual, sobre os riscos na Barra do Sahi, área mais atingida. Segundo o mesmo, quando tentou construir quatrocentas casas populares num terreno em Maresias, foi barrado pelos proprietários mais ricos.
O governo federal, através dos ministérios do Meio Ambiente e das Cidades, precisará dar condições aos entes locais para que se preparem. Mas, mesmo esse último ministério também tem um histórico de prática pouco afeita a um planejamento menos politizado. Com a exceção de um curto período após a sua criação, o Ministério das Cidades tem sido gerido por políticos de centro-direita, com uma ótica mais empresarial, e mais interessados em ampliar seus pequenos poderes. Portanto, não apenas as administrações locais precisarão se preparar e adotar formas de atuação condizentes com o novo paradigma climático, mas também as administrações estaduais e o governo federal.
A novidade é que temos um presidente que dá sinais de que compreende a gravidade e a dimensão do problema. Mas, não é novidade escrever sobre as condições urbanas que potencializam essas catástrofes. Tampouco é novidade que ambientalistas e urbanistas chamem a atenção para esses problemas. Muito menos é novidade que propostas para mudança de curso, com melhor planejamento das cidades, sejam incansavelmente expostas, divulgadas, brandidas na frente dos políticos. Quem sabe, um dia, eles as percebam.