Roberto Anderson: É a chuva e a falta de planejamento

Choveu torrencialmente no litoral paulista no domingo de Carnaval. No entanto, chuva torrencial, um fenômeno comum em boa parte do território brasileiro, se tornou um conceito incapaz de definir o que ocorreu

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Foto: Reprodução Instagram prefeito Felipe Augusto

Choveu torrencialmente no litoral paulista no domingo de Carnaval. No entanto, chuva torrencial, um fenômeno comum em boa parte do território brasileiro, se tornou um conceito incapaz de definir o que ocorreu. Foi um dilúvio concentrado em poucos pontos. Choveu mais do que 600 mm num único dia, o maior registro no país até então, e o dobro do esperado para aquela área nessa época do ano para um mês inteiro. Por falar em expectativas de volumes de chuva, será preciso repensar esses parâmetros. Eles subiram muito. A crise climática está aí, é uma realidade, gerando catástrofes e mortes. Muito triste, mas poderá ficar pior se não adaptarmos nossas cidades. 

O presidente Lula sobrevoou as áreas de desastre. Na entrevista em que concedeu em seguida, além de oferecer apoio material e solidariedade aos moradores dos municípios atingidos, ele pediu que não sejam mais construídas casas nas áreas passíveis de serem afetadas por novos deslizamentos e enchentes. Aí está a síntese do imenso programa que temos pela frente: mapear as áreas mais suscetíveis a desastres, adaptar os planos locais à nova realidade de crise climática, e realocar as moradias atualmente em áreas de risco. 

Angra dos Reis, Rio de Janeiro, Niterói e São Gonçalo em 2010, Friburgo em 2011, Niterói em 2018, Bahia em 2021, Santa Catarina, Recife, Angra dos Reis e Petrópolis em 2022, o litoral de São Paulo em 2023, os eventos extremos, com perdas de vidas, se sucedem com cada vez maior frequência. A crise climática não só traz ameaça às áreas urbanas próximas ao mar e aos rios, já que o nível dos oceanos deverá subir, mas também às áreas de encostas. Ali, os volumes crescentes das chuvas tendem a provocar grandes deslizamentos, com perdas de vidas e de bens materiais. 

Outro fator a ser considerado é a diferença de condições entre as classes sociais para enfrentar tais eventos extremos. O caso das cidades litorâneas paulistas exemplifica essa situação. As áreas entre o mar e a rodovia Rio-Santos, portanto mais desejadas e mais caras, sofreram menos. Já as áreas acima da rodovia, mais íngremes e mais próximas da Mata Atlântica, são aquelas mais ocupadas por pessoas mais pobres, e foram as mais atingidas. A preocupação com tais circunstâncias é o que se chama justiça ambiental, ou justiça climática. A discussão sobre o problema precisará considerar a maior vulnerabilidade locacional das pessoas com menos recursos.

Um grande entrave a ser enfrentado é a falta de preparo técnico das prefeituras para lidar com essa nova realidade, e o imediatismo dos políticos. Eles, em geral, são pouco afeitos a planejar o desenvolvimento futuro de suas cidades, e a cumprir os planos, quando estes são realizados. Há também a recusa de vizinhanças mais ricas em receber projetos de habitação social. O prefeito de São Sebastião já havia sido alertado em 2020, pelo Ministério Público Estadual, sobre os riscos na Barra do Sahi, área mais atingida. Segundo o mesmo, quando tentou construir quatrocentas casas populares num terreno em Maresias, foi barrado pelos proprietários mais ricos. 

O governo federal, através dos ministérios do Meio Ambiente e das Cidades, precisará dar condições aos entes locais para que se preparem. Mas, mesmo esse último ministério também tem um histórico de prática pouco afeita a um planejamento menos politizado. Com a exceção de um curto período após a sua criação, o Ministério das Cidades tem sido gerido por políticos de centro-direita, com uma ótica mais empresarial, e mais interessados em ampliar seus pequenos poderes. Portanto, não apenas as administrações locais precisarão se preparar e adotar formas de atuação condizentes com o novo paradigma climático, mas também as administrações estaduais e o governo federal. 

A novidade é que temos um presidente que dá sinais de que compreende a gravidade e a dimensão do problema. Mas, não é novidade escrever sobre as condições urbanas que potencializam essas catástrofes. Tampouco é novidade que ambientalistas e urbanistas chamem a atenção para esses problemas. Muito menos é novidade que propostas para mudança de curso, com melhor planejamento das cidades, sejam incansavelmente expostas, divulgadas, brandidas na frente dos políticos. Quem sabe, um dia, eles as percebam.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

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